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11 março 2020
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Empresa Pública Jornal O Século Fotografia de Empresa Pública Jornal O Século

Cheias de solidariedade

​​​Campanha do Grémio atenuou prejuízos das farmácias atingidas pela grande inundação de 1967.

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De uma voracidade sem precedentes, a enxurrada levou até as portas e os vidros da montra das novas instalações da Farmácia Joleni, em Odivelas, que ainda não tinham sido inauguradas. Na Botto & Sousa, de Alhandra, a lama acumulada chegou aos dois metros de altura. Devorou medicamentos e documentação, comprometendo o serviço da farmácia, que quatro meses depois da terrível noite de 25 de Novembro de 1967 ainda funcionava a meio-gás. É certo que o prejuízo de 400 mil escudos foi muito inferior ao da vizinha Farmácia Central, de Vila Franca de Xira, que declarou 910 mil (hoje mais de 320 mil euros). Contudo, ambas perderam receituário. Não fosse a boa vontade da Federação das Caixas de Previdência, que liquidou o valor apurado por estimativa, com base na média dos meses anteriores, e o rombo nos cofres seria bem pior.


O maior desastre natural que se abateu sobre a região de Lisboa desde o terramoto de 1755 também afectou farmácias

O Governo comprometeu-se a indemnizar as vítimas das inundações, o maior desastre natural que se abateu sobre a região de Lisboa desde o terramoto de 1755. Um dos instrumentos foi o Serviço de Apoio às Actividades Económicas nas Zonas Devastadas, criado n​​o âmbito do Ministério da Economia. Das mais de duas dezenas de farmácias atingidas, 15 usufruíram de financiamento, segundo uma lista da Inspecção-Geral das Actividades Económicas, com data de 2 de Fevereiro de 1968.

Então instalada na Rua da Triana, em Alenquer, a Farmácia Matos Coelho sofreu prejuízos da ordem dos 570 contos, resultantes de uma perda quase total. Foi a que obteve a verba mais elevada: 85 contos de subsídio e 250 de empréstimo. A Eurico Pais, que em 1968 viria a integrar a Direcção do Grémio, coube uma pequena ajuda para reparar os danos na Farmácia Benfiluz, em Lisboa. Uma drogaria, de que também era dono, foi totalmente destruída.

De acordo com a documentação disponível no arquivo do Grémio Nacional das Farmácias, herdado pela ANF, não foram consideradas elegíveis para beneficiarem de dinheiros públicos quatro farmácias de Lisboa, uma de Loures e outra de Caxias. Os apoios oficiais revelaram-se, aliás, escassos para compensar os prejuízos.

A Botto & Sousa teve direito a 75 contos, mas a Central, de Vila Franca – onde, na descrição feita por um dos seus responsáveis em carta de Abril de 1968, a corrente «aniquilou em poucos minutos todo o nosso brio e labor» – só recebeu 15 contos. Por essa altura, já o Grémio estava em campo. Em parceria com o Sindicato Nacional dos Farmacêuticos, lançara duas semanas depois das cheias um gigantesco movimento de solidariedade. E a 15 de Dezembro de 1967, através da circular 17-A/67, convocou para uma reunião os proprietários das farmácias afectadas, com vista a apurar a dimensão dos prejuízos. Depressa obteve informações acerca dos medicamentos danificados, para em conjunto com o Grémio dos Armazenistas de Drogas e Produtos Químicos e Farmacêuticos do Sul providenciar a reposição.
No imediato, a medida beneficiou cinco farmácias.

Ao mesmo tempo, tratou de verificar a situação no terreno. No âmbito deste processo, um fiscal ainda encontrou no imóvel destinado à Joleni duas dezenas de maços de algodão, demasiado deteriorados para serem postos à venda. «Tendo investigado o caso na vizinhança e nas farmácias da localidade, todos foram unânimes em declarar que a cheia lhe tinha levado tudo o que lá tinha dentro das novas instalações», escreveu o fiscal no seu relatório. A farmácia não terá recebido um tostão do Governo – pelo menos, não há no arquivo informação nesse sentido.

O apelo do Grémio ao fornecimento gratuito de medicamentos cuja distribuição garantiu, encontrou eco em farmácias e em dezenas de laboratórios. Da lista constam empresas de Lisboa – Saber Portuguesa, Sanitas, Quimifar,Fidelis, Hoechst Portuguesa e União Fabril Farmacêutica, por exemplo – mas também portuenses, como a Paracélsia e a Laquifa. Os laboratórios Azevedos, Barral, Normal e Sandoz, entre outros, optaram pelo apoio directo às farmácias.

Em pouco mais de três meses, o altruísmo dos associados do organismo corporativo traduziu-se num valor superior a 100 contos. Mais exactamente 107.580 escudos, montante que equivaleria actualmente a 35.770 euros, de acordo com a última relação conhecida, com data de 11 de Março de 1968. Os donativos chegaram de farmácias de todo o país (a Delegação do Porto reuniu 15.550 escudos), mas também contribuíram entidades estranhas ao sector, como a Associação de Socorros Mútuos João de Deus, de Silves, e a Junta de Freguesia de S. Martinho da Cortiça (Arganil), ambas com 100 escudos. Até a Misericórdia de Santa Cruz, da Madeira, participou, enviando 500 escudos.

O boletim oficial do Grémio não fez qualquer referência à intervenção desencadeada. Compreende-se: é improvável que o assunto se tornasse leitura de cabeceira dos funcionários dos Serviços de Censura, incumbidos de pintar o país de cor--de-rosa, o que também implicava a remoção de sinais do desordenamento urbano que agravou os efeitos da tragédia. 


Derrocada de prédios em Queluz, próximo do aqueduto e do rio Jamor, provocou mortos e feridos 

No relatório do ano de 1967, a Direcção fez questão de deixar uma nota de reconhecimento: «No dia 25 de Novembro, catastróficas inundações provocaram graves prejuízos em alguns dos nossos agremiados de Alhandra, Alenquer, Amadora, Queluz, Odivelas, Caxias e Lisboa. O Gré​mio, de acordo com o Sindicato Nacional dos Farmacêuticos, patrocinou uma campanha de apoio com a colaboração dos laboratórios e o apoio financeiro dos profissionais. Aqui se presta sincera homenagem a todos quantos colaboraram nesta generosa iniciativa».
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