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9 outubro 2020
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

www.arquivofarmacias.pt

​​​Documentos históricos das farmácias já estão online.

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Abrir uma janela para a sociedade: é esse o objectivo primordial do sítio electrónico www.arquivofarmacias.pt​. Na plataforma, que acaba de ser lançada, vai ser progressivamente depositado material do Arquivo Histórico das Farmácias, projecto dinamizado pela ANF. Vale a pena espreitar.

Designado Arquivo Elephante na fase preparatória – o ph da velha grafia da palavra farmácia associado ao animal de grande porte, que traduz a ideia de memória – o Arquivo Histórico das Farmácias consolida a ambição de desbravar o passado, para com ele aprender. Como? Procedendo ao levantamento, organização e disponibilização pública do acervo da ANF. Indispensável para conhecer a história do sector farmacêutico em Portugal, a tar​efa é hercúlea, dada a dimensão do arquivo. Constitui, todavia, um estímulo à acção. «O que é grande é para se ver», como escreveu Duarte Santos, director da Farmácia Portuguesa, na edição nº 225, de Janeiro-Fevereiro de 2018, que pela primeira vez abordou o projecto.

Há um par de anos – um pouco mais, para sermos rigorosos – a equipa do Arquivo Histórico dedica-se ao trabalho de formiguinha, que tantas vezes começa na delicada operação de limpeza de documentos cuja idade já pesa, culminando no registo e digitalização. No processo, a pressa deixa-se ultrapassar pela paciência, seguindo o velho ditado segundo o qual devagar se vai ao longe. Ainda assim, já vicejam frutos do que foi plantado.

Desde o início envolvido no projecto, o Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa está prestes a concluir a produção de uma monografia sobre o Grémio Nacional das Farmácias (GNF), representativo dos empresários farmacêuticos durante a Ditadura, cujo espólio foi herdado pela ANF. A coordenadora científica, Ana Paula Pires, encarou a tarefa como um desafio. Na já citada edição da Farmácia Portuguesa, revelou as razões do seu apetite de historiadora: «O Grémio surge num período [1939] em que Portugal, apesar de neutral, sofre os impactos e as consequências da guerra. Isso também se reflecte nas farmácias. Alguns dos documentos que estão no vosso arquivo mostram precisamente a forma como passaram a vender açúcar e a ter um controlo bastante pesado da comercialização e, até, do tabelamento de preços».
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O Arquivo Histórico das Farmácias reúne mais de 10.000 dossiers, 129 caixas de documentos do Grémio e 220 mil documentos no Sistema de Gestão Documental

Mais de 10.000 dossiers depositados em Palmela; 129 caixas do GNF transportadas da Quinta das Janelas, em Óbidos, para a sede nacional da ANF; mais de 220 mil documentos no Sistema de Gestão Documental; uma intranet (ANFonline) que permanentemente acolhe circulares, newsletters, fotos e vídeos: eis uma pequena amostra do longo caminho a percorrer. Por onde se começou? Precisamente pela digitalização de todos os números da revista Farmácia Portuguesa, pequena parcela do material já consultável no site [ler artigo nesta edição]. Onde já chegámos? Para dar apenas um exemplo, a 55 metros lineares de documentos tratados e higienizados arquivisticamente.

O levantamento documental em curso inclui outras publicações e presta especial atenção às actas de órgãos internos do GNF e da ANF, bem como à recolha de legislação do sector farmacêutico e da organização corporativa, entre 1933 e 1976. Doado à Associação, o espólio de Odette Ferreira tornou-se uma prioridade. Ainda em fase de levantamento – estão em causa mais de 100 caixas, correspondentes a 25 metros lineares – transformar-se-á a prazo num fundo autónomo.


A condecoração de Odete Ferreira pelo Estado francês com o grau de cavaleira da Ordem das Palmas Académicas

O acervo da saudosa pioneira da investigação sobre sida em Portugal abrange vasta documentação relacionada com a sua passagem pela presidência da Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA, entre 1992 e 2000 – em 1993, promoveu, em parceria com a ANF, o programa “Diz não a uma seringa em segunda mão” – e com a ligação à Faculdade de Farmácia de Lisboa, como docente, investigadora e dirigente. A uma rica biblioteca de livros técnicos, juntam-se intervenções de Odette Ferreira em palestras e colóquios. Entre o material de índole pessoal, encontram-se fotografias, o diploma de doutoramento em Ciências Farmacêuticas pela Universidade de Paris-Sul e o que consagra a condecoração pelo Estado francês com o grau de cavaleira da Ordem das Palmas Académicas, bem como correspondência trocada com a Embaixada de França em Lisboa a propósito da atribuição do mesmo grau da Legião de Honra.

Outros espólios têm vindo a ser tratados. Os herdeiros de Joaquim Francisco Torrinha entregaram material do farmacêutico de Vila Viçosa – essencialmente publicações profissionais da década de 1940, mas também obras técnicas mais antigas, que podem ter de ser submetidas a restauro.

O antigo bastonário da Ordem, Aranda da Silva, confiou ao Arquivo documentação do seu pai, Elísio Rainha da Silva, farmacêutico que em 1944 se estabeleceu em Moçambique, onde desenvolveu actividade de oposição ao salazarismo, chegando a ser preso, e que após a independência adquiriu a nacionalidade moçambicana.

Ficam assim acessíveis o termo de posse como chefe do Serviço Farmacêutico do Ministério da Saúde de Moçambique, datado de 4 de Outubro de 1975 ou a escritura de doação de bens ao Estado moçambicano, em 1976. Por altura da Revolução de 25 de Abril, note-se, Rainha da Silva dominava cerca de 40 por cento do mercado de medicamentos da então colónia.

As pesquisas efectuadas pelo já tiveram o condão de oferecer base suficiente para definir os contornos de alguns episódios, que constituem fragmentos da história do mundo farmacêutico, em particular no capítulo do associativismo. Alguns deles foram já partilhados com os leitores da Farmácia Portuguesa.


Cada farmácia tem um dossier histórico, que em muitos casos remonta aos tempos do Grémio


Metido no espartilho do Estado Novo, o Grémio pouco mais fazia do que cumprir determinações governamentais, como a de vestir a farda de polícia, para identificar – e punir – farmácias que concediam ilegalmente descontos a clientes. Documentação do arquivo da organização prova à saciedade até onde podiam ir os “raides” fiscalizadores e como funcionava o sistema de “pilotos”, jovens ou adolescentes encarregados de apanharem farmacêuticos em falso.


O espólio do Grémio Nacional das Farmácias passa a estar disponível aos historiadores do corporativismo no Estado Novo

Acerca do exercício ilegal da actividade farmacêutica, cujo combate estava entregue ao GNF, o espólio é elucidativo das barreiras que enfrentava. Tornada comum a venda de especialidades farmacêuticas em qualquer estabelecimento, a concorrência desleal vert​ia-se em queixas, que desaguavam no órgão oficial do organismo. 

Em Fevereiro de 1960, um sócio apodava de «causadores da nossa ruína» os proprietários de drogarias e mercearias onde se encontrava linhaça ou álcool puro, e de lojas de materiais de construção que vendiam solu to de mercurocromo ou comprimidos de cibazol. Noutra edição do Boletim, de Outubro de 1950, propunha-se um remédio santo para a manifesta incapacidade do Grémio de apagar este fogo. A delação, de preferência servida em doses cavalares: «Convém que todos os agremiados que possam indicar os “vendilhões amadores” o façam».

Pela revista Farmácia Portuguesa passaram outros momentos marcantes da História do GNF, reconstituídos a partir do trabalho desenvolvido no âmbito do Arquivo Histórico, como a campanha que empreendeu, em conjunto com o Sindicato Nacional dos Farmacêuticos, para ajudar à recuperação das farmácias atingidas pelas cheias de 25 de Novembro de 1967 na região de Lisboa.

Dezenas de laboratórios forneceram gratuitamente medicamentos e, segundo a última relação conhecida, de 11 de Março de 1968, os donativos dos associados atingiram em apenas três meses 107.580 escudos, valor que equivaleria hoje a quase 36.000 euros.

Entre as apostas futuras do projecto, conta-se o tratamento de material conservado nas Delegações da ANF do Porto e de Coimbra. A mais ousada, porém, consiste em envolver os associados. «Tem documentos, fotografias ou outros materiais com valor histórico? Tem estórias para nos contar?». As perguntas têm sido formuladas num anúncio regularmente publicado nestas páginas, com o apelo a que «junte o seu papel à nossa História», usando como meios de contacto o e-mail arquivoelephante@anf.pt ou o telefone 213400648. José Manuel Almeida Sousa, dono da Farmácia Almeida Sousa, em Buarcos, na Figueira da Foz, respondeu à chamada, ao reunir documentação relacionada com a Farmácia Ferrão, de Carapinheira do Campo, no concelho de Montemor-o-Velho, que o seu pai, o ajudante técnico de farmácia Manuel Alves de Sousa, adquiriu em 1969.


Arca da memória

O 25 de Novembro de 1939 não será uma data tão simbólica como a de 1975, mas para os farmacêuticos tem especial significado. Nesse dia, nasceu oficialmente o Grémio Distrital dos Proprietários de Farmácia de Lisboa, que no ano seguinte se converteu em nacional. A acta n.º 1, assinada pelo presidente, João Almeida Pinto, o secretário, Manuel da Silva Carvalho, e o tesoureiro Ernesto Lima Amaro, está disponível em www.arquivofarmacias.pt, entre os documentos reunidos pelo Arquivo Histórico das Farmácias.


Acta n.º 1 do Grémio Distrital dos Proprietários de Farmácia de Lisboa, que no ano seguinte se converteu em nacional, datada de 25 de Novembro d​e 1939

Baseado no Archeevo, software de gestão de arquivos concebido pela empresa bracarense Keep Solutions, que entre os clientes conta com a Presidência da República e diversos arquivos universitários e municipais, o site, qual arca da memória, já acolhe cerca de 2.000 registos e 900 representações gráficas. No domínio das publicações, proporciona o acesso à colecção completa da revista Farmácia Portuguesa e às diversas séries dos boletins do Grémio Nacional das Farmácias – entre os quais o nº 51, de Abril de 1974, onde figura a sessão de posse dos novos corpos gerentes da equipa liderada por Maria do Castelo, a poucos dias do golpe de Estado que depôs Marcello Caetano. Além de exemplares da Pharmaka, revista do Sindicato Nacional dos Farmacêuticos e do GNF lançada em 1968.

Como a história (também) se faz de pessoas, têm vindo a ser produzidas no âmbito do projecto pequenas biografias – cerca de 240, neste momento – com indicação de fontes, para ajudar investigadores e público em geral a aprofundarem o conhecimento acerca dos biografados. A par de figuras históricas como Amato Lusitano, Paracelso, Pedro Hispano e Caetano de Santo António, lá estão dezenas de dirigentes associativos do sector farmacêutico – José Dionysio Corrêa, da Sociedade Farmacêutica Lusitana; Almeida Nifo, do Grémio; João Cordeiro, João Silveira ou Paulo Cleto Duarte, da ANF. A lista inclui professores universitários, investigadores e todos os bastonários da Ordem dos Farmacêuticos.

Talvez por esta via queira descobrir o leitor Tomé Pires, boticário do século XVI, autor de “Suma Oriental”, primeira descrição europeia da Malásia e a mais antiga e extensa descrição portuguesa do Oriente, Mar Vermelho e Japão. Ou o farmacêutico Roberto Duarte Silva, nascido em 1837 em Cabo Verde, que fez carreira em França como químico, investigador e docente – era tanta a sua proximidade com os alunos que o tratavam por “Le Pére Silva”. Presidiu à Sociedade Química de Paris e acabou por naturalizar-se francês. Está sepultado no cemitério de Montparnasse, onde um monumento honra a sua memória.
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