Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
10 fevereiro 2020
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

300 dias de azul

​​​​​​Em tempos, Tavira foi a porta de saída para o Norte de África. Hoje, a vida corre ​sem pressa.​

Tags
O dia amanhece luminoso. É assim 300 dias por ano. Bandos de pássaros esvoaçam alegremente no céu azul, sobrevoando o casario branco onde despontam os topos de algumas das 21 igrejas de Tavira. Chegaram a ser mais, o que estará associado ao facto de Tavira ter sido a porta de saída para o Norte de África. E ao medo de ver os homens partir para o mar. Buganvílias cobrem os muros das casas, laranjeiras cuidadosamente podadas debruam as ruas, o rio Gilão corre sereno no seu caminho para o mar.


O farmacêutico Bráulio Bota aprecia o clima, as paisagens e o sossego do sotavento algarvio

Quando o sol sobe, as esplanadas enchem-se de estrangeiros de t-shirt. As temperaturas desafiam a estação do ano. Junto à ponte romana, passeiam casais com crianças, meia dúzia de pessoas relaxam nas escadas do anfiteatro ao ar livre, onde em Agosto se aglomeram centenas de turistas. A vida corre devagar, sem pressa.  É assim o Algarve, no Inverno. O clima, as paisagens e o sossego dão à região uma «atmosfera única e pura» a que Bráulio Bota chama a «magia do sotavento algarvio». O farmacêutico gere há 33 anos uma farmácia na zona serrana, em Santa Catarina da Fonte do Bispo, a terra com o nome mais comprido de todo o Portugal.


Até à ponte romana o rio chama-se Séqua, a partir daí até ao mar chama-se Gilão e tem pouco mais de 500 metros

Ao longo de 60 quilómetros, até à praia da Manta Rota, estende-se a Ria Formosa, o enorme sapal que é casa de corvos marinhos, ostraceiros, maçaricos, garças comuns e reais, colhereiros, águias reais e até flamingos, nalgumas épocas do ano. A vista sobre a ria é de cortar a respiração a partir da pequena aldeia muralhada de Cacela Velha. Memoráveis são também as ostras que, no Verão, convocam diariamente dezenas de turistas em fila, à porta do restaurante Casa da Igreja. Imperdíveis são também as ostras que, no Verão, convocam diariamente dezenas de turistas em fila, à porta do restaurante Casa da Igreja. 


​Vista do castelo sobre Tavira, que foi a porta de saída para o Norte de África

A ria é fonte de riqueza, com os seus viveiros de ostras e amêijoas. Alguns barcos carregados de peixe, sobrevoados por gaivotas agitadas pelo cheiro, cruzam as águas rumo à lota de Santa Luzia, vila piscatória conhecida como “capital do polvo”. Mas em Tavira os barcos de pesca contam-se pelos dedos deuma mão. Há sobretudo barcos dedicados ao turismo, como as oito embarcações de António Passeiro, que na crise de 2008 mudou de ramo, depois de uma vida dedicada à construção civil. No Verão chega a empregar 15 pessoas. A maioria dos skippers são pescadores que, entre Março e Novembro, largam​ a pesca pelo turismo.


O acesso à praia do Barril faz-se através do pequeno comboio que pertence ao aldeamento turístico Pedras d'El Rei

É também pela ria que se faz o acesso, por barco, às praias que se estendem ao longo dos 11 quilómetros da ilha de Tavira, a praia do Homem Nu, da Terra Estreita e da Ilha de Tavira. A excepção é a praia do Barril, onde se chega a pé ou apanhando o pequeno comboio preto e vermelho que pertence ao aldeamento turístico Pedras d´El Rei. O Barril é um museu vivo que conta a história da pesca do atum que ali se fez ao longo de mais de um século, até 1966. Lá permanecem, cravadas na areia, as 300 âncoras que sustinham no fundo do mar a gigantesca armadilha de redes colocada, entre Março e Setembro, para aprisionar os atuns na sua travessia do Mar do Norte ao Mediterrâneo, para desovar. «Em seis meses, chegavam a ser capturados 40 mil atuns, alguns com mais de 300 quilos», conta a arqueóloga Brígida Baptista. O avô foi mestre do vapor Três Irmãos, a mãe viveu no Barril até aos 14 anos. Nas casas em banda abrigavam-se homens, mulheres e crianças, uma comunidade de 100 pessoas que ali vivia mais de metade do ano sem condições de saneamento, deslocando-se de barco até Santa Luzia para ir à escola e à igreja. O restaurante Museu do Atum, na antiga casa dos patrões, une a gastronomia à história, servindo uma panóplia de pratos de atum, como atum braseado à bulhão pato, tataki, muxama, estupeta e carpaccio.


O Arquivo Histórico António Rosa Mendes reúne o espólio das antigas fábricas conserveiras, contando a história do ciclo da sardinha e do atum

O peixe, esse, seguia por barco até Vila Real de Santo António, com destino à indústria conserveira. Propriedade de portugueses, mas também de espanhóis, italianos ou gregos, as fábricas alinhavam-se ao longo da Avenida da República, defronte do rio Guadiana. Foi, até meados do século XX, uma indústria florescente e a principal fonte de subsistência da população, que vivia em condições duríssimas. «Quando soava o apito anunciando a chegada dos barcos (cada fábrica tinha um apito distinto), as mulheres levantavam-se e vinham trabalhar, fosse dia ou noite», conta Madalena Guerreiro, arquivista no Arquivo Histórico Municipal António Rosa Mendes. Muitas vezes levavam consigo os bebés, deitavam-nos nos bancos de madeira que, virados ao contrário, eram pequenas caixas, e amamentavam-nos quando era preciso. Hoje, na avenida já não se ouvem apitos nem se sente o cheiro a peixe cozido. A cidade vive do comércio e do turismo, Ayamonte já ali ao lado.


Vista sobre a serra do Caldeirão, também conhecida por Mu

A poucos quilómetros do litoral encontra-se o barrocal, zona de transição para a serra, onde abundam os pomares.  É outro Algarve, menos desenvolvido, onde o modo de vida e até a alimentação se distinguem. «Na serra e no barrocal encontramos um ambiente antigo, mais original, são quase mundos diferentes», explica Bráulio Bota. Perto da Farmácia Bota, funciona o Lagar Santa Catarina, um dos cinco que subsistem no Algarve. Produz azeite «à antiga», fino e bastante frutado, feito exclusivamente com azeitona maçanilha algarvia. É muito apreciado pelos estrangeiros, «motivo de orgulho» para Renato Rocha, o proprietário. O lagar, modernizado, funciona desde 1913. Este ano a produção contou com pouco mais de mil toneladas de azeitona. A campanha só não foi melhor devido à seca que preocupa todos os que moram no sotavento algarvio. 

Em Santa Catarina da Fonte do Bispo, a produção de cerâmica foi importante, graças ao filão de argila que atravessa o barrocal. Os mais de 20 telheiros e os lagares de azeite davam trabalho a quase todos os que ali moravam. O telheiro Alberto Rocha é o maior da meia dúzia que continua a laborar. Na eira de terra batida avermelhada repousam centenas de tijolos alinhados. Ali ficam a perder humidade antes de serem colocados manualmente nos grandes fornos verticais. A luz amarelada, filtrada pelas placas de fibra de vidro e plástico, ilumina as partículas de pó e torna o ambiente quente e confortável. Ildefonso Viegas manuseia a argila molhada com destreza, colocando-a nos moldes.
Trabalha nos telheiros desde os 12 anos, durante oito foi padeiro. Acha as duas ocupações parecidas. A verdade é que parece que está a brincar, fazendo bolos de areia.

 

Notícias relacionadas
Galerias relacionadas