REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA: Na primeira vaga, por que se antecipou a apelar aos portuenses para se confinarem em casa e a pedir a declaração do estado de emergência?
RUI MOREIRA: Quando fomos atingidos na primeira fase, nós percebemos mais rapidamente o que se passava porque, em primeiro lugar, estávamos atentos aos outros países. Depois, porque eu não tinha por hábito ver televisão à hora de almoço e ouvir as conferências da directora-geral da Saúde, fiquei imune à ideia de que a doença não chegava cá. Eu via mais televisão à noite, normalmente as notícias do estrangeiro. E percebi que, se os países com os quais nós temos porta aberta, nomeadamente Itália, França, ou Espanha, estavam com aquela pandemia, a não ser que nós tivéssemos algum anticorpo especial, iríamos levar com aquilo. Se ia cá chegar, havia coisas que era preciso fazer imediatamente. A primeira coisa era fechar, porque o sistema nacional de saúde, nessa altura, não estava preparado para aguentar o impacto daquele tsunâmi, como o senhor primeiro-ministro, e bem, lhe chamou. Nós antecipámos aquilo que podíamos. Fizemos aquilo que podíamos, fizemos se calhar até mais do que podíamos.
Na segunda vaga, a Câmara do Porto foi das primeiras a antecipar horários para o final da tarde, convidando as pessoas a voltar a frequentar teatros e espectáculos. Como explica esta mudança tão grande de estratégia?
Nesta fase, é diferente. Em primeiro lugar, os instrumentos que estão hoje ao dispor dos municípios são muito poucos. Os teatros municipais são quase a única coisa que eu posso decidir. Com as feiras já mudaram de opinião, andaram para a frente e para trás. E posso decidir, em rigor, que os restaurantes, em vez de fecharem às 10h30 da noite, fecham às 9h da noite. De resto, não me deram mais competências.
«O cidadão que paga impostos espera que o Estado responda. Temos de ser capazes de corresponder às necessidades absolutas e imperiosas deste momento», declara Rui Moreira
Não lhe fazem confusão medidas que mudam tudo de uma hora para a outra?
Eu nunca entendi que vírus é este que a partir das 10h30 da noite desaparece. Pelo contrário, sempre defendi, e escrevi ao senhor primeiro-ministro, naquela fase mais aliviada, que devia haver um alargamento dos horários, como aconteceu em Espanha. No Verão, não fiz férias fora do Porto, mas fui ali a Sanxenxo, onde de vez em quando vou. E verifiquei isto, curiosamente: andava toda a gente na rua de máscara, era obrigatório. Em Agosto, lá, era obrigatório andar de máscara. Aqui, agora é, mas não era. Primeiro até disseram que a máscara era má, depois que era inútil, aquela confusão. Lá, andava toda a gente de máscara. Fui jantar a um restaurante, entrei de máscara, sentei-me numa mesa e acabei de jantar, como é normal lá, à uma da manhã. Depois, quis ir beber um copo com os amigos, fomos a um bar, entrámos de máscara, disseram que nos tínhamos de sentar numa mesa, e saímos de lá eram três da manhã. O que é que isto fazia? Era reduzir a pressão sobre o espaço. Aqui, por alguma razão, acharam que fechando tudo à 1h30 da manhã o vírus desaparecia. Mas não desaparecia, passou foi para as festas ilegais.
Deveríamos adoptar a mesma estratégia?
Continuamos a pensar mal. O que é que nós precisávamos? De desfasar horários. Quer no trabalho, quer no transporte público, quer nas actividades comerciais.
Não há aqui um excesso de autoridade do Estado, quando em vez de regras sanitárias universais diz a que horas se pode jantar, a que horas...
Há, claramente. Até escrevi isso num artigo do Expresso, logo em Março ou Abril. Esta pandemia, não sendo bem comunicada e não sendo bem assumida, estava a trazer à tona dois extremos. De um lado, defensores das liberdades individuais que não querem saber da liberdade colectiva para nada. Do outro, os que acham que a liberdade colectiva deve esmagar as liberdades individuais. Entre os securitários e os libertários, é muito difícil navegar. Navega-se como? Tentando comunicar e explicar. E é isso que nós temos tentado fazer. Com alguma dificuldade, mas vamos tentar fazer até ao último dia.
A Câmara Municipal do Porto ofereceu equipamento aos centros de saúde e foi a primeira a comparticipar a vacinação nas farmácias
A Câmara do Porto cedeu viaturas aos centros de saúde, montou dois centros de testes, já iremos às farmácias. Esta pandemia veio inaugurar uma nova era do poder local na Saúde?
Não. Esta pandemia veio mostrar o seguinte: os cidadãos, quando olham para o Estado, olham para a proximidade como uma vantagem que têm ao seu dispor. Algumas forças políticas têm questionado se a Câmara devia pagar estas coisas. O senhor vereador do PSD diz-me: «Mas a Câmara...». Não quer dizer que ele ache mal, mas diz «Quem devia pagar era o Estado». E eu respondo: «Pois, mas não pagando o Estado alguém tem de pagar».
E em tempo de guerra não se limpam armas.
Não é só a Câmara do Porto. Eu acho que o poder autárquico em Portugal tem demonstrado mais uma vez o valor da proximidade, de nós conhecermos as pedras da calçada. O Estado vê de cima, vê um bocado como o milhafre lá em cima, olha para nós e vê com o Google Maps. Nós estamos em contacto com a população, conhecemos a rua. Nós temos de responder àquilo que é o fracasso da observação do Estado, porque estamos mais próximos. E percebemos que, às vezes, a única coisa que falta na rua é um paralelo e temos de o pôr lá.
Não tem preconceitos em financiar respostas em saúde?
Não.
Não devemos perder tempo a discutir quem deve pagar?
Não é tempo disso. Um dia faremos contas, se quiserem. Mas para o cidadão comum, o cidadão que paga impostos, espera que o Estado responda. Todos somos extorquidos por impostos, todos nós pagamos, é um bocado irrelevante para nós saber se aquele imposto vai para a câmara, a junta de freguesia ou um ministério. Temos de ser capazes de corresponder àquilo que são, neste momento, as necessidades absolutas e imperiosas. E como o país é muito diferente, porque o Porto é muito diferente de Lisboa, e ainda mais de uma pequena vila do Interior, cada executivo municipal, cada junta de freguesia, percebe melhor quais são as necessidades. Se consegue, apesar de tudo, gerar receitas, mais vale pôr nisto do que noutra coisa qualquer.
Do que fazer mais uma rotunda, não é?
Exacto.
«Este é o momento de recuperar a função histórica de acompanhamento das pessoas que as farmácias têm»
Foi o primeiro autarca a fazer um protocolo com as farmácias para a vacinação da gripe. Porquê?
As farmácias têm hoje todas as capacidades, não só para disponibilizar a vacina, mas também para aplicar a vacina. Ora, se hoje os centros de saúde estão claramente sobrecarregados, porque sofrem uma enorme procura por outras razões, se os profissionais dos centros de saúde estão hoje debaixo de um enorme stress, por que não havemos de utilizar as farmácias para fazerem aquilo que sabem fazer muito bem? Para além disso, as farmácias têm o factor proximidade. As pessoas que mais precisam de fazer a vacina da gripe são pessoas com 65 anos ou mais, que não nos interessa que andem a circular pela cidade, nem a fazer grandes distâncias. Também não nos interessa que vão para um centro de saúde, onde estão sentadas à espera de fazer uma vacina, com alguém suspeito de ter COVID-19 ao lado. Com as farmácias, chegamos à malha fina. E estamos a fazer outra coisa. Portugal pré-encomendou 6 milhões e meio de doses de vacinas contra a COVID-19. Bem, vamos precisar das farmácias para aplicar essas, não tenhamos dúvida nenhuma. Se conseguirmos mobilizar as farmácias de proximidade para a vacinação da gripe sazonal, as farmácias vão ficar municiadas, para quando chegar a vacina da COVID-19 também nos ajudarem nessa missão. Para aplicarmos seis milhões e meio de vacinas em hospitais, que vão estar sobrecarregados com os doentes que têm COVID-19, e nos centros de saúde que estão hoje em ruptura, vamos ter as vacinas e não vamos ter condições de as aplicar. É uma questão óbvia de logística, se assim quiser.
Acha que na governação da Saúde essa relação entre o público e o privado tem funcionado bem e vai funcionar dessa forma que acabou de preconizar?
Temo que aqui e ali haja uma versão ideológica quanto à forma de combater a pandemia. Sou um grande defensor da Saúde Pública. Trato-me há muitos anos num hospital público, apesar de ter possibilidade de o fazer em hospitais privados. Trato-me no IPO do Porto, há muito anos. Sou um utilizador, um consumidor do SNS. A estrutura do SNS tem de ser baseada no público. Mas, como tudo na vida, deve ter complementaridades. E não deve criar uma fronteira ideológica entre o SNS e aquilo que é privado. Esta era uma altura que podíamos ter antecipado esta colaboração de uma forma mais activa. Não o fizemos por uma razão pura e simplesmente ideológica, e isso é lamentável. É lamentável. Como seria lamentável se hoje viesse um governo de extrema-direita, que acreditasse que a saúde devia ser toda privada, e subitamente dissesse: «Isto só pode ser tratado no privado. Não podemos utilizar os hospitais públicos para a COVID-19». Poderia acontecer, mas seria ridículo. Nestas alturas nós precisamos de tudo. É um bocado como quando há uma guerra. Temos de ser capazes de pegar em todos os recursos, sem acharmos que este menino é da história azul e aquele menino é da história vermelha. Porque, se assim for, estamos a criar fracturas na sociedade. E, acima de tudo, estamos a desperdiçar recursos.
Conhece um protocolo que a Câmara de Águeda fez, em que comparticipa a preparação individualizada da medicação a doentes crónicos e a idosos, nas farmácias, para que eles não andem a trocar os medicamentos todos os dias?
Não conheço, mas acho magnífico, porque vejo a minha mãe. De vez em quando, é um problema. Quando vou a casa dela, percebo que a racionalidade das doses tem de ser bem gerida.
E sabia que ainda antes da pandemia foi lançado um projecto-piloto aqui no Hospital de São João, do Porto, de colaboração com as farmácias comunitárias…
Sabia.
…para evitar que doentes de Castro Laboreiro, e de mais longe ainda, tenham de vir aos hospitais centrais do Porto só para levantar medicamentos?
O que é uma coisa escandalosa! Isso sabia, que vêm pessoas que fazem, muitas vezes, quatro, cinco horas de viagem, apenas pela necessidade de fármacos. Sabia.
Que explicação encontra para isso, se o país tem uma rede de farmácias bem distribuída pelo território?
Olhe, eu sou de um tempo em que as farmácias prestavam cuidados de saúde primários, nas aldeias principalmente.
Rui Moreira sugere uma visita ao Museu da Farmácia do Porto para se conhecer as raízes e a função da profissão farmacêutica
À falta de alternativas, faziam um pouco de tudo.
Exactamente. Quando não havia centros de saúde espalhados pelo país, os farmacêuticos tinham um papel muito importante, de aconselhamento, de acompanhamento. E isso era feito de uma forma proactiva. Essa ligação rompeu-se. Rompeu-se por razões, se calhar, de índole política, por várias razões históricas que não nos cabe aqui apreciar. Acho que este era o momento de voltar a recuperar essa função que as farmácias têm. E é pena não ser feito. Eu acho que todos os portugueses sabem que, quando precisam de um aconselhamento, vão a uma farmácia, se não há um determinado medicamento que lhes foi recomendado, aparece sempre alguém que é capaz de dar um conselho e é capaz de dizer: «Olhe, espere, vá ao médico». Isto é um bocado como andarmos no arame de um circo: é muito importante ter redes. E as farmácias sempre funcionaram, são uma rede milenar. A nossa herança tem muito a ver com a presença árabe – e já na altura havia farmácias. As farmácias sempre tiveram estes papéis. As farmácias são mais antigas quase do que os médicos. Era muito importante compreender este papel social que as farmácias têm e julgo que muitas vezes não tem sido entendido. Aliás, quem tiver dúvidas, vem aqui ao Museu da Farmácia do Porto e percebe de onde é que isto vem, que isto não é de agora, que não foi uma coisa do século XX. Era importante que as pessoas visitassem.