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8 fevereiro 2021
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«Costa é mais estratega, Rio mais táctico»

​​​​Rui Moreira diz que PS e PSD se comportam​ «como irmãos siameses», abrindo espaço «às franjas para tomar conta disto».

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Revista Farmácia Portuguesa: Na primeira entrevista depois de ser eleito presidente da Câmara do Porto, em 2013, que concedeu à SIC, disse: «Acho que o dr. António Costa e o dr. Rui Rio têm sido exemplares». Hoje continuaria a dizer o mesmo?
Rui Moreira: Não sei em que contexto eu disse isso.

Deixe-me ajudá-lo. Um de cada vez: «O dr. António Costa, acompanhei a actividade dele no Ministério da Justiça, no MAI, na câmara, tem sido um político em que muitos de nós se inspiram». Continua a inspirar-se nele, depois de conhecer estes anos de Governo?
Continuo a achar que o dr. António Costa tem, independentemente de não concordar com algumas das opções que ele fez, algumas delas por necessidade até de sobrevivência política – mas a política também é isso, é saber navegar em todos os mares – continuo a achar que o dr. António Costa, ao contrário do que dizem, tem uma visão, não táctica, mas mais estratégica para o país. Em muitos aspectos, acho que tem governado bem. Se me perguntar se tem sido capaz de fazer as transformações estruturais de que o país porventura necessitaria, não, não tem sido capaz. Julgo também que essa possibilidade não lhe tem sido dada. E não sei se ele as queria fazer. Portanto, tem sido um bom gestor do país.

Rui Moreira acusa PS e PSD de fazerem leis para o impedir de se recandidatar como independente

E o dr. Rui Rio, pode ser uma boa alternativa? Disse nessa entrevista, quando o substituiu na presidência da câmara, que ele tinha «provado ser possível governar uma cidade contra os lóbis». Acha que como primeiro-ministro poderia fazer a mesma coisa?
Não sei se o dr. Rui Rio vai chegar a primeiro-ministro. Acho que o dr.  Rui Rio é provavelmente mais táctico do que o dr. António Costa. Acho que o dr. António Costa é mais estratega do que o dr. Rui Rio. Curiosamente, é o contrário do que as pessoas pensam. O dr. Rui Rio tem, ainda assim, uma coisa que eu aprecio: acho que é uma pessoa muito persistente. Tem tentado mudar um partido, que, de facto, nunca teve uma ideologia. O PSD, desde Sá Carneiro, portanto, desde que é PSD, nunca teve uma ideologia. Foi sempre mais um instrumento de poder do que propriamente um partido com ideologia. Acho que o dr. Rui Rio tem uma visão ideológica e quer levar o PSD atrás dessa sua visão ideológica. O que me parece é que é tão próxima da visão ideológica que o dr. António Costa tem, que às vezes a criação de irmãos siameses para governar um país acaba por não funcionar muito bem. E nós depois compreendemos isso quando, por exemplo, fazem leis que praticamente me impedem de voltar a concorrer como independente à Câmara do Porto. A tentativa de funcionarem como irmãos siameses, numa proximidade ideológica, a meu ver excessiva, e às vezes obsessiva, em que se percebe que as querelas entre eles têm mais a ver com aspectos mais tácticos do que estratégicos, retira ao país capacidade de mudança. Ao mesmo tempo, fortalece aquilo que são as margens e as franjas do sistema. Franjas do sistema que, naturalmente, vão crescer, ou seja, é um bocado aquela ideia da fortaleza: “Nós os dois, dois partidos muito próximos, cada vez mais próximos ideologicamente, governamos isto desde 1975. Mais vale fecharmos e não mudarmos. Termos umas querelazinhas, mas no fundamental ficarmos ligados. porque ao fim e ao cabo garantimos a nossa subsistência”. É um bocadinho como o sistema mexicano. Se no México havia um partido, que era o PRI, aqui temos dois partidos. É como o PRI dividido em dois. Não sei quanto tempo isto vai durar. Não sei se é bom durar. O problema é que se não durar, neste momento, o que parece é que vão ser as franjas a tomar conta disto.


Sobre a sua eleição: «Os partidos ainda não perceberam o que aconteceu no Porto. E não estão a perceber o que pode acontecer no Porto doravante»

No discurso de tomada de posse disse: «Nós não somos contra os partidos, mas os partidos não têm estado bem». Por aquilo que me acaba de dizer, parece que têm estado pior ainda nestes últimos anos, ou não?
Eu acho que os partidos ainda não perceberam o que, na altura, aconteceu no Porto. E acho que os partidos não estão a perceber o que pode acontecer no Porto doravante.

Está a anunciar-me a sua recandidatura?
Não, não é uma candidatura... não tem que ser uma…

Quando vai decidir? Quando é que vai anunciar a decisão?
Não sei. Quando eu decidir, quando entender que devo comunicar. Mas, gostaria de saber quem são os candidatos dos partidos. Porque, naturalmente, quando uma pessoa pensa em sair, uma das coisas que... Eu não sou nada de pensar "depois de mim, o dilúvio". Mas gostava, já agora, de saber quem é que são os candidatos. No PSD, se é o dr.  Rui Rio, ou se é uma pessoa indicada pelo dr. Rui Rio, quem é. Gostava de saber quem é o candidato do PS. Era útil. Isso seria inspirador para mim. Perceber se os candidatos dos principais partidos me tranquilizam, no sentido de pensar: "eu vou-me embora, mas fica cá, seja um ou outro – espero que não seja um único, mas pode ser, podem-se coligar –, pelo menos que seja alguém em quem uma pessoa diga assim: “eu agora vou para casa tranquilo, porque isto a seguir a mim vai ser mais bem governado do que por mim”. Acho que o dr. Rui Rio teve essa preocupação também. Acho que o dr. Rui Rio, na altura, não quis que fosse o dr. Luís Filipe Menezes. Não sei se queria que fosse eu, se calhar também não, mas tinha essa preocupação. Eu também tenho essa preocupação, quero saber quem é que vem atrás de mim, a seguir. É normal, é humano e é razoável. E faz parte da solidariedade que um presidente da Câmara tem que ter com a população. Já não é a população com o presidente da Câmara.

Quando cá estiveram os reis de Espanha, dirigiu-se ao Presidente Marcelo e agradeceu-lhe «o facto de ter sido capaz de abraçar todo o país com uma postura de proximidade». Mantém essa opinião?
Mantenho.

Seria capaz de o apoiar, como fez com Mário Soares no passado, na recandidatura?
Eu acho que o Presidente Marcelo não precisa que eu o apoie.

A Câmara de Lisboa, numa só eleição, já deu dois presidentes da República, quer o que ganhou quer o que perdeu, e já deu um primeiro-ministro. Quando é que a câmara do Porto poderá dar um cargo desses? Qual dos dois é que acha?
Um primeiro-ministro? O senhor acaba de dizer que o dr. Rui Rio é candidato a primeiro-ministro, pode dar.

Candidato.
Mas pode dar.

Acha que este cargo está mais talhado para fazer um presidente da República ou um primeiro-ministro?
No meu caso, nem uma coisa nem outra. Eu acho que quem é presidente da Câmara do Porto deve olhar para a presidência da Câmara do Porto como o patamar que deve querer atingir. E deve ser o máximo patamar, mais nenhum.

A cadeira de sonho?
Eu não gosto muito da cadeira de sonho. A cadeira de sonho já correu mal a alguns, portanto não gosto, não gosto muito da expressão.

A sua irmã dizia que quando era novo não podia ver um cão ou um gato na rua que o levava para casa. Isso quer dizer que compreende esta legislação que proibiu o abate de animais?
Eu acho estranho que se discuta a eutanásia entre os humanos e se proíba a eutanásia aos animais. Cada um de nós pode e deve gostar dos animais. Eu sempre tive essa característica e continuo a ter. Tenho em minha casa dois coelhos que salvei, porque no outro dia fui a um mercado, vi os dois coelhos, fui comprá-los e soltei-os no meu jardim, porque eles iam para tacho, e assim não estão no tacho. E os meus netos adoram os coelhos, continuam a ser assim. Dito isto, nós não podemos confundir as pessoas com os animais. São coisas diferentes. E o animalismo com que nós hoje vivemos preocupa-me muito. E preocupa-me esta ideia da esterilização maciça dos animais. Porque, vamos lá ver, se entendemos que os animais têm os mesmos direitos que os humanos, eu ainda não encontrei nenhum animal que me dissesse que queria ser esterilizado. Há aqui alguma coisa de estranho no animalismo e na forma como os animais têm vindo a ser tratados. Eu acho que hoje temos um excesso de animais domésticos. Acho que é um egoísmo, que tem muito a ver com a solidão na nossa sociedade, mas isso levava-nos a grandes discussões. Com todo o respeito pelos animais, não posso olhar para a minha avó e para a minha cadela da mesma forma. Já não tenho avó, mas tenho mãe. Não olho da mesma maneira. Faz-me muita impressão que, de vez em quando, pareça que os valores estejam invertidos.

Quando estava na Comissão Municipal de Toponímia votou, vencido, para dar o nome de uma das ruas do Porto a Gisberta, uma transsexual que morreu às mãos de um grupo de rapazes, apesar de os tribunais não terem conseguido condenar ninguém. O que é que quis significar com esse voto?
Essa proposta foi subscrita por mim e pelo professor Hélder Pacheco. É curioso falar nisso, há quatro dias ele esteve aqui no meu gabinete e voltou a fazer essa proposta e a Comissão Municipal de Toponímia voltou a recusar. Acima de tudo, era um sinal de tolerância. Ou seja, provocar as pessoas para perceberem que uma pessoa pelo facto de ser transexual não merece ser assassinada, e ela foi assassinada por causa disso. Parecia-me que era um sintoma de tolerância da cidade, que muitas vezes atribuiu ruas da cidade a coisas que a gente não compreende muito bem, que não têm muita importância. Era a tolerância, o princípio. Para, sempre que lá passássemos, nos confrontarmos com uma história terrível de intolerância, que foi transmitida para miúdos que provavelmente por causa dessa intolerância mataram um transsexual que não lhes fez mal nenhum. Que não lhes fez mal nenhum. Apanharam-no e mataram-no. Mataram essa pessoa. De vez em quando nós devemos ser capazes de colocar na nossa memória essa história. Não tem a ver com a culpa, tem a ver com responsabilidade.

De que lado é que está no debate, muito polarizado, como quase tudo nestes dias em Portugal, sobre a disciplina de Educação Cívica?
Acho que é um debate que está de tal maneira polarizado em questões ideológicas que me incomoda muito que a coisa seja discutida dessa forma. Quando eu andava no liceu havia uma disciplina parecida, que se chamava Organização Política e Administrativa da Nação. Também ela tinha um de- terminado conteúdo ideológico. Eu diria que, desde que os professores sejam bons, acho que tudo pode ser ensinado.

Aos 17 anos, em pleno PREC, criou a União dos Estudantes Democratas Independentes no liceu público, que pretendia ser uma terceira via entre uma posição mais de...
E ganhámos as eleições.

Não acha que essa é uma guerra perdida, que hoje na sociedade portuguesa o que está a dar são posições hiper-extremadas?
Acho que não. A nossa candidatura, em duas eleições sucessivas, ganhou no Porto. Se quiser, nós não somos mais do que a União dos Estudantes Democratas Independentes, transposta para 50 anos mais tarde, para um palco diferente.

E acha que essa terceira via continua a ter futuro em Portugal?
Tenho a certeza, não apenas em Portugal. Tenho a certeza absoluta.

E não deixará de combater por ela?
E não deixarei de combater por ela. Quer dizer, “combater”, vamos lá a ver, estamos numa fase, até com as eleições nos Estados Unidos e tudo o mais, temos de ter muito cuidado com essa expressão. Não deixarei de pugnar por ela. Eu não combato. Na esfera pública, devemos pugnar e não combater.

Mas está disponível? Como pedia o Sócrates – o dos livros do Platão – as almas que sabem qual é o caminho têm o dever de se disponibilizar para a governação. Continuará disponível ou não?
Não é para a governação. Você está a querer apanhar-me com uma citação que eu conheço e não é bem essa. O que nós não podemos deixar é a cidadania, no fundo é isso. No espaço da ágora não podemos abandonar a cidadania. E no espaço da ágora não abandonarei a cidadania enquanto estiver lúcido. Mas é diferente, é cidadania.

Escreve segundo a antiga ortografia. Porquê? 
Porque acho que a nova ortografia é um molho de brócolos. É uma coisa a que ninguém aderiu. Acho que é uma vergonha. O professor Adriano Moreira agora tem escrito umas coisas sobre isso, vale a pena ler aquele que é talvez o melhor pensador português neste momento, que é o Prof. Adriano Moreira, e perceber que ninguém aderiu àquilo. Mas ainda bem que há diferenças. A minha avó escreveu toda a vida de acordo com a ortografia antiga, escrevia “pharmacia”, com “ph”. Eu quero continuar a escrever óptimo com “p”. E não consigo escrever acta, a acta de uma reunião de câmara, como quem “ata” os sapatos. Acho que isto foi tudo uma tolice. Nós não percebemos que os brasileiros falarão sempre o português do Brasil e entenderão sempre o nosso português escrito. E nós falaremos o português de Portugal e entenderemos sempre o português do Brasil, falado e escrito. O nosso grande desígnio devia ser que os brasileiros entendessem o nosso português falado. Competia ao Instituto Camões ter feito isso. Podia-se ter feito através da música, das telenovelas. Qualquer um de nós chega ao Brasil, não digo tanto em São Paulo ou no Rio de Janeiro, mas vai para o sertão profundo, e se falar como nós estamos a falar agora aqui, eles não entendem uma palavra. Essa devia ter sido a nossa missão, fazer com que o português fosse uma língua de geometria variável, mas em que nós nos entendêssemos. Porque a língua, acima de tudo, é da fala, é do som. Aquilo que nós quisemos fazer foi uma coisa que, no fundo, ninguém cumpre. Eu continuarei a incumprir.
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