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29 julho 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de André Torrinha Vídeo de André Torrinha

Um palmo enorme de vida

​​​Sónia vence todos os dias uma doença rara.​

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Sónia dirige aos ecrãs um fascínio indisfarçável. Os dedinhos ágeis acedem às aplicações no telemóvel e manuseiam com destreza as imagens encerradas nas câmaras. Não é fácil proteger as máquinas da determinação da menina de oito anos. A figura frágil encobre uma vivacidade e obstinação difíceis de contornar. Sónia sabe poucas palavras, mas expressa-se com facilidade, nem que seja conduzindo pela mão a pessoa até ao objecto do seu desejo. «É uma criança curiosa e despachadíssima, abre as portas da vida sozinha, não precisa de mim para muita coisa, não», conta a mãe, Suyane Felipe.  

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A terapia aquática ajudou a diminuir a rigidez muscular e a melhorar a fluidez e coordenação dos movimentos

Filhos de mãe brasileira e pai português, os gémeos Sónia e Fernando nasceram às 32 semanas de gestação. Havia uma discrepância de tamanho entre as duas crianças e, quando nasceu, Sónia «cabia na palma de uma mão e o pé era do tamanho do polegar». Os traços físicos da menina chamaram a atenção de uma médica pediatra da Maternidade Alfredo da Costa, que, ao segundo dia de vida da bebé, pediu autorização aos pais para realizar um teste genético. Confirmou-se o diagnóstico: Síndrome de Cornelia de Lange, uma alteração genética com repercussões a nível cognitivo e motor.

 


A fisionomia da menina conserva algumas das características físicas que denunciam esta doença rara, que afecta uma pessoa em cada 45 a 62 mil: boca de “carpa”, nariz arrebitado, estatura e peso baixos, muitos pêlos, sobrancelhas espessas, por vezes unidas. A doença é assustadora pelo leque abrangente de consequências, desde problemas cardíacos, do aparelho digestivo, de desenvolvimento e fala, afectação de membros à nascença, sobretudo mãos e braços. A Sónia não teve órgãos afectados, com excepção de um pequeno sopro no coração, entretanto resolvido. No início, nem sustinha o pescoço, pensava-se que não chegaria a andar ou falar. Hoje a mãe tem de correr atrás dela. Consegue vestir-se, comer sozinha e manusear objectos sem qualquer dificuldade. Além disso, transpira vida. 

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Os três filhos sempre foram tratados da mesma forma, para que crescessem sentindo-se iguais e com as mesmas oportunidades

«A Sónia teve uma sorte tremenda ou, como diz o irmãozinho dela, “fabulástica”», brinca a mãe. Sorte porque o gene afectado a colocou no espectro menos grave da doença, a vida a cruzou com uma pediatra experiente que interpretou os sinais à nascença, porque nasceu numa família que, além de meios para fazer tudo por ela, a recebeu como igual. Os três filhos, de oito e 13 anos, sempre foram tratados da mesma forma, para que crescessem sentindo-se iguais e com as mesmas oportunidades. «Sabendo que um precisa do outro. Não é só a Sónia que precisa deles», explica Suyane.  

O diagnóstico precoce permitiu a Sónia começar a ser «trabalhada» desde os primeiros dias de vida. As várias terapias de apoio ao desenvolvimento «deram muito certo» e hoje tem uma vida bastante normal. Terminou o segundo ano do primeiro ciclo numa escola pública do ensino regular, que inclui oito horas semanais de ensino especial. As limitações manifestam-se sobretudo ao nível da linguagem verbal e do desenvolvimento cognitivo. Também é uma criança «mais agitada», que requer maior tolerância. Suyane está grata aos «profissionais brilhantes» que passaram pela vida da filha, mas não esconde as barreiras que têm enfrentado. «A inclusão é muito bonita no papel, mas na prática é muito distorcida», resume.  

No jardim relvado da casa, Fernando exibe o perfeito domínio da leitura, enquanto a irmã se distrai com a tecnologia. Sónia ri quando o irmão mais velho, António, a carrega ao colo e lança no minitrampolim. Suyane e Sumaia, a ama que veio do Brasil em 2015 para ajudar a família, preparam a mesa do lanche à sombra das árvores e de um grande toldo. No interior da casa, o pai, António, gestor de empresas, ocupa-se em reuniões através das plataformas digitais. Pelo portão do quintal, entram uma e outra terapeuta, para as sessões que a Sónia continua a frequentar. É uma casa cheia, onde a vida corre alegremente. Uma vida que se tornou diferente desde que a Síndrome de Cornelia de Lange visitou a família, mas nem por isso pior.  

Foram muitos dias de agonia passados no hospital à espera que os filhos abandonassem as respectivas incubadoras, sem a certeza de que estariam vivos no dia seguinte. Dias de medo causado por esta doença de nome holandês, em honra da pediatra que a identificou. «Medo do futuro dela, não do desafio», esclarece a mãe. «Se Deus me deu a possibilidade de ter essa criança nas mãos é porque sabia que eu era capaz de suportar e, principalmente, de ajudar».  

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A mãe, Suyane Felipe, deixou o emprego como advogada para assumir tarefas cem vezes mais trabalhosas

Suyane saiu «do luto para a luta». Não hesitou em abandonar o emprego como advogada e substituí-lo por uma mescla de tarefas cem vezes mais trabalhosas. É mãe, motorista, enfermeira, professora, costureira. «Um trabalho cansativo, mas prazeroso», diz, com um grande sorriso.  

Mais do que o quotidiano, a doença mudou a forma de entender a vida. Suyane largou um dia-a-dia de pressa e focado em objectivos de futuro, para viver o presente e priorizar o amor. Vive intensamente cada descoberta e conquista dos filhos, e trabalha com cada um as respectivas dificuldades. Tem consciência que deixou de fazer parte dos «padrões sociais» vigentes. E gosta. «É uma delícia viver assim. Sinceramente, eu aproveito cada dia da maternidade». Ao marido agradece o tempo que lhe proporciona e sabe que o retorno está «na forma como a família e os filhos se entrelaçam».  

 
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O casal vive um dia de cada vez, sem criar expectativas. A ambição é proporcionar aos filhos as oportunidades para que cada um atinja o seu máximo potencial

O casal só quer viver em harmonia e proporcionar aos filhos as oportunidades para que cada um atinja o seu máximo potencial. Vivem um dia de cada vez, sem criar expectativas. «Pequenas conquistas, como dizer uma palavra nova ou conseguir um raciocínio lógico, insignificantes para outras pessoas, para nós são muito importantes», explica o pai. A mãe diz que ver a filha alcançar conquistas que no seu íntimo julgava impossíveis a levou a acreditar que «tudo é realizável, se tivermos força de vontade e fé». Não faz ideia se algum dia a filha vai conseguir falar, mas isso não é o mais importante. «Se a minha filha falar, óptimo, se ela for feliz com a linguagem gestual também sou feliz, muito feliz».
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