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9 novembro 2020
Texto de Irina Fernandes Texto de Irina Fernandes Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira

Um mar de força

​​Os médicos garantiam que Carlos Gaspar não voltaria a andar sem um apoio. Ele não só caminha outra vez como faz caça submarina e natação em águas abertas.

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​31 de Março de 2008. Numa fracção de segundos, o corpo é empurrado violentamente para o chão. Os olhos deixam de ver. «O impacto foi tão forte que nem o cérebro teve tempo de assimilar o que estava a acontecer», lembra Carlos Cabral.

Operador fabril, com 21 anos na altura, encontrava-se na Central Termoeléctrica de Sines quando uma grua com cerca de 500 toneladas desabou.


Com um grau de incapacidade de 75 por cento, amigos e família elogiam-lhe o espírito positivo

Escapou ao impacto directo, ficando enterrado no meio da ferragem. As lesões acabariam por ser profundas. E para a vida. Coluna atingida, esmagamento do sacro e de parte da bacia foram algumas das sequelas. Vive, desde então, com um grau de incapacidade de 75 por cento. Usa uma tala no pé direito e anda com o apoio de uma muleta.

«Foi só um acidente, como acontecem tantos outros por aí. Aconteceu-me a mim e a um outro colega», reage com serenidade. 

Desistir – da vida e de si – nunca lhe fez sentido.


Pratica caça submarina desde os 17 anos. «Gosto muito de estar dentro de água. É onde me sinto bem, sem limitações»

Rapaz de porte atlético, Carlos, agora com 34 anos, é uma força da natureza, garante quem o conhece em Vila Nova de Santo André, onde vive. Ou não fosse ele um desportista nato. Aos 11 anos iniciou-se no triatlo e logo depois seguiu-se a natação. Aos 17 interessou-se mais a sério pela caça submarina. Nunca mais parou. O mar é uma das maiores paixões e sempre o inspirou. «Gosto muito de estar dentro de água. É onde me sinto bem, sem limitações». À boleia do mesmo amor experimentou surf adaptado e hoje, diz, «é mais um vício».


A viver na Costa Vicentina, Carlos é um apaixonado pelo mar

Recentemente, abraçou um desafio maior: faz travessias a nado, de longa distância, ao largo da Costa Vicentina, no Alentejo.

Por amor ao mar e ao desporto, tem viajado pelo mundo, sempre na busca do melhor mergulho. Carlos encarou o acidente sem fatalismos.

«Foi uma viragem na minha vida». E não uma derrota.

«Temos de aceitar o que a vida nos dá. E agarrarmo-nos ao que temos de bom».

No Hospital de São José, em Lisboa, esteve duas semanas em coma induzido. Seguiram-se quatro meses de internamento. Ali viu-se sem mobilidade e deitado «sempre, sempre de costas» numa cama.

Não se podia mexer nem para a esquerda nem para a direita. E comia deitado. Concentrou-se em viver um dia de cada vez, cumprir o próximo objectivo. Não se deixou ir abaixo mesmo quando ouviu o pior dos prognósticos: não voltaria a andar sem um apoio.


Desde o primeiro dia no hospital, Carlos manteve-se fiel à sua filosofia de vida: seguiu em frente

«Aceitei a realidade e reagi a ela», explica Carlos.

Fez várias intervenções cirúrgicas. Carlos Gaspar passou mais quatro meses internado, desta vez no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Ali reaprendeu a mover-se. A equilibrar-se. Mas cedo deu provas de que não era um paciente qualquer.

«Fazia sempre mais do que era esperado. E por isso também puxavam mais por mim», lembra.

Nunca se permitiu a grandes esperanças de que iria ficar bom, mas, ainda assim, lutou. Pela primeira vez sentado numa cadeira de rodas, reagiu sem medos ou constrangimentos.

«Pode ser chocante dizer isto, mas achei a cadeira fascinante. Adaptei-me rapidamente e comecei logo a pensar em alternativas para me mover». 

Chegou a frequentar sessões de acompanhamento psicológico, mas percebeu que não precisava porque não era uma pessoa depressiva.

― «Tu tens de aceitar que eu agora estou assim!», ia dizendo à mãe, Teresa Maria.

― «Eu sei que tu vais voltar a andar», respondia-lhe esperançada. O coração de mãe não se enganou.

Há quem diga que a rápida recuperação se deveu à prática contínua de desporto. Carlos está seguro de que a capacidade de superação lhe salvou a vida.


Carlos acredita que sem capacidade de sacrifício não se consegue nada na vida

«Não vou dizer que não me fui abaixo, mas isso foi só um dia ou dois. Depois, virei a página», afiança, sublinhando que «sem capacidade de sacrifício não se consegue nada na vida».

É, até aos dias de hoje, um exemplo para a equipa médica que o acompanhou.

«Quando o meu médico me vê, diz-me: “Tu és um milagre”».

Todos os dias, Carlos vive com dor. Uma consequência da dormência constante que tem no nervo ciático da perna direita.

Todos os dias recusa o sofá e responde com obstinação. «Faço alongamentos e tento estar o mais ocupado possível para me abstrair da dor».

Para Carlos, não há limites intransponíveis na vida. É por isso que assume com humor e desprendimento a limitação física que o afecta. «Às vezes penso para mim: Porque é que não fiquei sem a perna? Digo-o por causa do trabalho que dá tirar e meter a tala», diz, bem-disposto.

Ano e meio após o acidente e já capaz de dar os seus próprios passos, Carlos voltou a trabalhar. É planificador de manutenção no complexo petroquímico da Repsol Polímeros, em Sines.

Pouco tempo depois, em 2011, fez-se à estrada desdobrando-se em viagens entre Santo André e Setúbal, para completar os estudos. Formou-se em Electromecânica no Instituto Politécnico de Setúbal e está prestes a concluir o Mestrado em Engenharia de Produção. «Já só falta defender a tese». 

Casado desde o ano passado, Carlos sonha com o próximo desafio: «Gostava de ser pai de um, dois ou três filhos [risos]. Tenha eu força para carregar tantas pranchas!».​

 


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