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4 maio 2023
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de Tiago Gonçalves Vídeo de Tiago Gonçalves

Um homem em movimento voluntário

​​A doença de Parkinson queria que Rui Camilo ficasse no sofá, mas ele declarou o sofá inimigo público.​

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Rui Camilo descobriu com 38 anos que tinha Parkinson. Foi um terramoto receber tão novo o diagnóstico desta doença crónica que afeta o sistema motor e está associada a idade avançada. Rui viveu os primeiros anos em negação e decadência física progressiva. Hoje trata a doença de Parkinson por tu, garante que não se rende e leva uma vida «quase normal». Ninguém o consegue parar.

 As três fotografias na parede da APDPk retratam a​​​ história da relação de Rui Camilo com a doença de Parkinson

A história da relação com a doença está simbolicamente representada em três fotografias, da sua autoria, expostas na parede da Associação Portuguesa de Doentes de Parkinson (APDPk). Na primeira, a paisagem nublada traduz a incerteza quanto ao futuro; na segunda, um caminho representa a descoberta de como lidar com a doença; na última, a lua cheia por cima de uma catedral representa a fé, seja ela qual for: «Uma luz que nos guie e mostre que a vida é o mais importante». O primeiro sintoma foi a negação dos sintomas. Mesmo quando a apatia e o olhar parado no vazio já chamavam a atenção dos amigos e colegas de trabalho, Rui Camilo continuava a dizer que era só «um dia mau». Se sentia dificuldade em abotoar os botões, era «o botão que era demasiado grande ou a casa que estava torta». Um dia, quando o pai lhe perguntou o que se passava, se andava metido na droga, decidiu ir à procura de respostas. Depressão foi o primeiro diagnóstico. Uma bateria de exames complementares concluiu, um ano depois, o que nunca lhe tinha passado pela cabeça: Parkinson, a doença causada pela morte dos neurónios que produzem dopamina, um neurotransmissor que ajuda a transportar mensagens entre as áreas do cérebro que controlam o movimento corporal.


Aulas de pilates são uma das terapias oferecidas pela Associação Portuguesa de Doentes de Parkinson (APDPk)

Abriu-se a porta de um mundo assustador, onde a cada dia surgiam novas e diferentes dificuldades: apertar os atacadores, fazer o nó da gravata, encaixar o fecho no blusão, manter os pés sossegados, lembrar nomes. Rui deixou de conseguir comer a sopa, cortar a carne ou arranjar o peixe. Sentava-se no sofá e não conseguia levantar-se, o corpo recusava obedecer. Chegou a passar meia ​hora sentado no carro à espera de que a medicação fizesse efeito, uma manhã inteira sentado no escritório sem poder mover-se. São os chamados estados off. O pior de tudo era a ansiedade de não saber onde ia parar, o stresse a agravar os sintomas. «É uma doença complicada», reconhece.

Os sete anos de declínio progressivo foram interrompidos com o apoio de duas pessoas «insubstituíveis». Quando «já não comia e se arrastava», a esposa obrigou-o a procurar ajuda na APDPk. Conheceu a terapeuta Josefa Domingos, que o pôs a fazer exercícios físicos e estimulação cognitiva. «Melhorei a mobilidade e comecei a não estar tão focado na doença», explica Rui. Pouco tempo depois, numa consulta no Hospital de Santa Maria, o neurologista Joaquim Ferreira ajustou a medicação que produz artificialmente a dopamina. Ao fim de uma semana, sentiu a diferença e foi-se «entusiasmando». A melhoria foi lenta, mas progressiva, e há anos que não se sente off. Rui Camilo descobriu a resposta para enfrentar a doença de Parkinson: «Equilibrar a medicação com o exercício físico, manter uma vida ativa, sem stresse», resume.


O xadrez é um ótimo exercício de estimulação cognitiva

Quando se sentiu a melhorar, começou a aceitar que tinha Parkinson. «Tens de assumir ou estás tramado», disse para si mesmo. Deixou de inventar desculpas para os sintomas, assumiu a doença fora da família nuclear (a mulher e os três filhos) e sentiu o alívio da clarificação: «Quem estava comigo ficou, quem não estava afastou-se». Deixou de sentir pena de si próprio e declarou guerra à doença de Parkinson. «Ela queria que eu ficasse no sofá e eu declarei o sofá como inimigo público, só me sento para ver um jogo do meu clube. Consegui que ela ficasse desolada com a minha atitude», diz, a rir. Rui acredita que só há duas hipóteses de lidar com esta doença: «Ou a puxamos para a nossa vida normal ou permitimos que nos puxe para o sofá». Deixa o apelo a todas as pessoas que vivem com a doença: «Não podemos permitir, de forma nenhuma, que a doença de Parkinson nos domine. Temos essa obrigação para connosco».

Os dias de Rui Camilo começam com um «shot de medicação»: sete comprimidos sortidos, só para arrancar, mais um a cada três horas. É o preço da qualidade de vida, reconhece. Aos 58 anos, não hesitou quando surgiu a oportunidade de se reformar, tinha já 42 anos de carreira como delegado de vendas e informação médica. «Mudou quase tudo», garante. Começou a ter tempo para se dedicar ao que mais gosta. Voltou a fazer fotografia, sempre que pode faz pesca à boia na Costa da Caparica ou no Guincho, já tem mobilidade para tarefas minuciosas com os dedos. Por vezes vai de bicicleta para a APDPk, onde ocupa o cargo de secretário da Direção. Gosta de fazer bricolage, e durante a pandemia começou a aprender a tocar guitarra. A atividade física faz parte dos seus dias: ténis de mesa, trampolins, passadeira, ginásio, futebol, patinagem, já fez pilates. Tem a agenda tão cheia que até lhe é difícil ​combinar coisas com os amigos.


O ténis de mesa requer mobilidade ao mesmo tempo que exige rapidez de raciocínio

Ter uma vida ativa fá-lo sentir-se bem física e psicologicamente. São poucas as coisas que faz por obrigação e recuperou tudo o que lhe dava gozo fazer. «Tenho uma vida quase normal, exceto de manhã e ao fim do dia, quando a medicação está mais fraca», explica. Em situações de stresse, tem dificuldade de equilíbrio, por vezes falhas de memória, os pés insistem em ter vida própria, mas «tudo está melhor agora», garante.

«Antes, quando eu puxava a cana já o peixe tinha comido o isco». Rui é o primeiro a rir-se de si mesmo, quando recorda a fase negra da doença: «Tinha três alturas no dia: a hora do peru, com os movimentos involuntários do tronco; a hora do poeta, em que a caneta ficava parada em espera; a hora do caracol, quando queria mexer-me rapidamente e o corpo não obedecia». Sempre foi brincalhão e a doença não lhe afetou o humor. A rigidez facial é um traço da doença, mas não lhe tira o riso do rosto.​

 


Manter a doença estável é a prioridade. Rui não falha as tomas da medicação, vai ao médico semestralmente para ajustar a medicação (há cinco anos que não regista alterações), e mantém uma vida ativa, mas tranquila. Só se expõe ao stresse em nome de um valor mais alto: divulgar a doença obriga-o a aparecer em público. «Se queres ajudar as pessoas, tens de dar a cara», diz, sem hesitar. Está empenhado em mudar a forma como, por desconhecimento, as pessoas julgam quem padece da doença: «Aquele indivíduo está com uma bebedeira que não se aguenta em pé! Anda metido na droga! Está a demorar como tudo, pensam as pessoas na caixa do supermercado».

Tem esperança de que o seu exemplo de vida ajude outros a declarar guerra à doença de Parkinson. À coragem com que vive o presente, junta o otimismo com que olha o futuro: «Todos os dias acordo e penso: mais um dia! Acordaste, estás vivo, faz-te à vida. O que é que tens para fazer hoje? Se te aguentares assim mais dez anos estás safo, entretanto descobrem a cura!».

 



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