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30 agosto 2016
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«Farmácias e USF devem ter programas comuns»

​​​​​João Rodrigues defende partilha de objectivos em saúde e incentivos financeiros entre cuidados primários e farmácias.​​​​​
RFP – Vê para as farmácias comunitárias e os profissionais que lá estão como parte das equipas de saúde dos cuidados primários? 
JR – Completamente.

 
RFP – Para que é que servem?
JR – Primeiro, servem, directamente, na qualificação da prescrição médica. Pode parecer um contra-senso, vindo de um médico, mas é o que defendo. Já o disse à frente do meu bastonário e não houve problema nenhum, ele ainda não me abriu um processo disciplinar. Nós precisamos de gente qualificada e os farmacêuticos são gente qualificada. Percebem do medicamento, logo deviam estar no circuito da qualificação do medicamento. 

 
 
​RFP – Pode explicar melhor?
JR – Deveremos ter programas em conjunto, nas áreas mais problemáticas. Por exemplo, temos três farmácias no concelho da Lousã. Se a ligação funcionasse no ideal, de três em três anos, no mínimo, faríamos um diagnóstico em comum. Temática: qualificação da prescrição. Discutíamos o diagnóstico, com uma linguagem comum, e verificávamos, por exemplo, um problema com as benzodiazepinas na Lousã. Sabemos qual é a boa prática, que não é um medicamento de prescrição crónica, que só pode ser tomado seis semanas, que tem de haver desmame, “desprescrição”, etc., etc.. Então, o que é que vamos fazer? Vamos arranjar uma estratégia comum. 

 
RFP – Mas os profissionais nem sequer se encontram! Só se for no café…
JR – Por isso é que eu defendo, desde sempre, que deveria existir um conselho local de acção social por cada área geográfica de proximidade, com 20 mil utentes no máximo. Todos os parceiros teriam um plano de atividades e o seu relatório. Ao fim do terceiro ou quarto ano, já teríamos as pessoas a discutir o diagnóstico e acções comuns nos planos de actividades. Defendo este modelo também para a prevenção e promoção da saúde.

 
RFP – E o problema da adesão terapêutica?
JR – Essa é uma das áreas nobres que deveríamos trabalhar em conjunto. Na área do medicamento deve existir uma ligação efectiva que começa, obviamente, na questão da adesão à terapêutica e na intervenção conjunta na questão da polimedicação. 

 
RFP – Na vida real, acontece. O senhor prescreve – e bem - um anti-inflamatório a um doente. Ele chega à farmácia e o farmacêutico apercebe-se de que já estava a tomar outro, ou duas ou três coisas imcompatíveis…
JR – Exactamente.

 
RFP – Acha que os médicos e farmacêuticos, na sua maioria, estão preparados para se ouvirem ou tomarem a iniciativa de se contactarem? 
JR – Na sua maioria, não estão. Temos de ser realistas. Mas já demos saltos qualitativos na partilha de informação. A  Plataforma de Dados em Saúde (PDS) está a permitir-nos tudo isso, mas é obvio que a área da medicação devia estar acessível a todos os profissionais de saúde. ​​

 

RFP – Como assim?
JR – Neste momento, só dá acesso aos médicos. Porque é que os farmacêuticos não entram na PDS? E não fica registado na PDS o que o farmacêutico aviou? O médico passa a receita para ir à farmácia. Mas o doente só lá vai lá se quiser. Por isso é que o farmacêutico é aqui um profissional importantíssimo. Primeiro, se concordar com o que está prescrito, convence o doente a levar, e depois a tomar. A PDS, quando não está em baixo, permite-nos ver toda a medicação do doente. Ou melhor, a medicação prescrita. Não a que sai da farmácia. Nós não sabemos a que saiu na farmácia, nem sabemos nada da venda livre, que também pode ter intercorrências. Há aqui todo um manancial de trabalho de equipa que devia ser feito.

 
RFP – O que recomendaria aos farmacêuticos para melhorarem a prática corrente?
JR – A primeira grande medida que deve ocorrer é uma ligação efectiva às unidades de saúde. Temos de insistir numa tentativa progressiva para falar a mesma linguagem, com o objectivo de haver actuações em conjunto para os problemas que são detectados. Se fizermos isso, progressivamente caminharemos em conjunto. Isto só se faz com partilha, não se faz com papéis. Mas é evidente que não depende só das pessoas na proximidade, são precisos programas nacionais.  

 
RFP – A maior qualidade da rede de farmácias é capaz de ser a sua distribuição homogénea no território.
JR – É uma mais-valia para o país.

 
RFP – Que papel é que devem desempenhar especificamente as farmácias que são o único serviço de saúde permanente em muitos pontos do território, onde já não há médico, ou ele só lá vai uma ou duas vezes por semana?
JR – De facto, temos uma heterogeneidade de realidades locais. Primeiro, temos de evoluir para que os diagnósticos sejam conhecidos, para depois desenvolver uma capacidade local de lhes dar resposta. Nós precisamos, de facto, de rentabilizar o que está no terreno, sem estarmos preocupados com a profissão em si, desde que existam condições técnicas para isso. Uma farmácia nessas condições tem de ter uma carteira de serviços muito mais vasta, tanto na prevenção e promoção da saúde, como no acompanhamento da própria patologia crónica.

 
RFP – Mas precisa de apoios, não é?
JR – Voltamos sempre ao mesmo: sem financiamento qualificado nós não evoluímos. A boa vontade não chega.

 
RFP – Vê com bons olhos a possibilidade dos serviços de saúde, desde logo de cuidados primários, falarem mais regularmente com essas farmácias isoladas?
JR – Isso é o que nós precisamos. Escrevi isso há dez anos. Se for ler as Linhas de Acção Prioritária para os Cuidados de Saúde Primários, há lá um capítulo sobre consultórios polivalentes móveis, para dar resposta às necessidades da população. Não são esses carrinhos que andam para aí. E nessas circunstâncias entra sempre quem está no local, para poder fazer. A renovação do receituário, por exemplo, devia ser obviamente articulada com o farmacêutico da área.

 
RFP – E a marcação directa de consultas? 
JR – Claro. Em vez de fazer como se faz agora, não é, em que “manda vir”, porque não conhece as regras de funcionamento. No caso, a culpa é de ambas as partes, não é só do farmacêutico…

 
RFP – Para si faria sentido receber doentes referenciados pela farmácia?
JR – Obviamente que sim. Mas referenciados correctamente - e aí é que entra a tal necessidade de discussão. O caso das tensões arteriais, por exemplo. Nós já tivemos várias discussões aqui na Lousã, porque nos chegavam doentes mandados pela farmácia com 160 de sistólica e 90 de diastólica. Agora já não acontece.

 
RFP – E já não acontece, porquê?
JR – Precisamente porque falámos com eles. É esse o grande valor da discussão e da partilha, em que nós todos ganhamos. Quando nós falamos na capacitação e no apoderamento do cidadão, se nós não tivermos a rede capacitada não termos cidadãos capacitados, isso é utópico. Se o farmacêutico não sabe actuar numa tensão 18 de máxima e dez de mínima, se o médico de família também não sabe, o que às vezes também acontece, temos os casos em que dão captopril sublingual… Uma das principais causas dos acidentes vasculares cerebrais chama-se baixa drástica da tensão arterial. E muitos profissionais médicos e da farmácia não sabem isto.

 
RFP – Então, na prática, temos um problema de formação contínua para resolver.
JR – É óbvio que sim. Mas vamos resolver, já fizemos muitas coisas.