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9 novembro 2021
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de António Araújo Fotografia de António Araújo

«Temos de criar programas de adesão à terapêutica»

​​​​«Os ganhos em saúde seriam enormes», ​diz Berto Cabral,  ​director Regional da Saúde dos Açores.​

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​Como foi começar o mandato com a cerca sanitária a Rabo de Peixe?
Logo na primeira semana de funções, foi um arranque bastante complicado. Foi necessário montar uma operação de testagem massiva à população. Na altura, foram feitos cerca de 7.000 testes. A operação foi um sucesso pela forma como a população aderiu.


Berto Cabral começou o mandato com uma cerca sanitária a Rabo de Peixe

Nos Açores, a taxa de incidência por COVID-19 é menos de metade da nacional e a mortalidade é um décimo. Isto deve-se ao facto de estarmos a falar de ilhas ou há outros factores?
É natural que o facto de serem ilhas possa ter contribuído. Agora, houve muitas medidas que foram tomadas muito cedo. Nós rapidamente instituímos testagens massivas, como nos casos de Rabo de Peixe e Vila Franca do Campo. Houve também uma testagem massiva à comunidade escolar, que decidimos fazer logo naqueles dias antes da passagem do ano. Quando numa ilha havia transmissão comunitária, instituímos a obrigatoriedade de testagem para viajar para as outras, o que aconteceu com São Miguel e a Terceira. E, depois, a obrigatoriedade de teste para entrar na Região.

A comparticipação do Governo Regional que permitiu aos turistas continentais fazerem testes gratuitos antes de embarcar foi importante para o sucesso do turismo neste Verão?
Não tenho dúvidas que pesou. Mas a boa situação epidemiológica dos Açores foi determinante. De facto, foi um ano excepcional, é o que vamos ouvindo dos empresários e nós próprios pudemos constatar.

A pandemia acabou por oferecer aos Açores uma vantagem competitiva?
Este Verão, concordo. Também pesou uma decisão do Governo de fixar o preço máximo de 60 euros nos vôos na Região para residentes. O ano do turismo foi bom em todas as ilhas.

Porque é que o Governo Regional recorreu às farmácias para testar a população, e porque é que ofereceu os testes e comparticipou o serviço?
Quando entrámos em funções, havia um stock de testes muito significativo. As farmácias são o serviço de saúde que mais se aproxima das pessoas. Há serviços farmacêuticos em todas as ilhas e concelhos, considerando também os postos farmacêuticos. Portanto, fazia todo o sentido aproximar esse serviço das populações.

Que balanço faz?
Tem sido significativo o número de pessoas testadas nas farmácias. É verdade que tínhamos a expectativa de mais farmácias aderirem, em mais ilhas. Mas também se compreende que algumas farmácias não tenham instalações com condições para isso, nem pessoal suficiente. O que é perfeitamente compreensível, porque a actividade da farmácia não se limita à realização de testes. Para já, o protocolo está em vigor até ao final do ano, mas poderá ser estendido.

Admite que outros serviços farmacêuticos venham a ser comparticipados, como a vacina da gripe?
Pelo que percebi, a testagem foi o primeiro protocolo assinado entre o Governo Regional e a Associação Nacional das Farmácias. Obviamente que estamos disponíveis para analisar outros, no superior interesse da população. O exemplo que dá é um deles. Sabemos que há muita procura para a vacinação nas farmácias.

Os Açores têm uma esperança média de vida inferior à nacional. Os doentes crónicos, por exemplo, não ganhariam em poder ser seguidos nas farmácias, até pela frequência com que lá vão?
Essa é uma área onde os utentes teriam muito a ganhar, onde o Serviço Regional de Saúde dos Açores teria muito a ganhar. Quem lida com os utentes percebe perfeitamente que existem problemas na adesão à terapêutica, muitas pessoas fazem a medicação de forma errada. Portanto, os ganhos em saúde seriam enormes, mas também em termos de custos. E as farmácias são o serviço que está mais próximo e muitas vezes disponível para prestar os esclarecimentos. Têm uma porta aberta, não é preciso marcar. Têm relações de grande confiança com as pessoas, muitas vão à farmácia semanalmente. Há programas de adesão à terapêutica que seria – que será – importantíssimo aprofundar. Os Açores têm uma esperança de vida cerca de dois anos inferior ao resto do País, portanto há aqui um caminho significativo a fazer.


O director Regional fez questão de visitar, no continente, o Serviço de Apoio ao Doente Deslocado, como sinal de reconhecimento

Com a pandemia, apareceram casos de pessoas que vêm das regiões autónomas a Lisboa só para levantar medicamentos…
Para ter uma consulta ou cirurgia, sim. Só para medicamentos, não tinha essa informação. O açoriano que tem de se deslocar ao continente, ou até mesmo para outra ilha, está sempre numa situação de grande vulnerabilidade, até mesmo emocional. Os Açores, pela sua pequena dimensão, e pela casuística baixa de muitas patologias, dificilmente poderão um dia ter resposta instalada para todos os problemas de saúde. Essa relação com o Serviço Nacional de Saúde irá sempre existir. Agora, importa dar o melhor acompanhamento possível, não só nos custos como psicológico e até na orientação das pessoas. Imagine uma pessoa que vive numa pequena ilha, ou localidade dos Açores, fragilizada por um problema de saúde, e que de repente se vê em Lisboa. Permita-me uma palavra de reconhecimento ao Serviço de Apoio ao Doente Deslocado, que é um braço da Região no continente e dá um apoio fundamental aos açorianos que passam por essa situação delicada.

Faz sentido as pessoas andarem quilómetros só para irem levantar medicamentos aos hospitais? Não deveria ser ao contrário?
Tivemos casos de pessoas que levantam a sua medicação nos hospitais do continente e que pediram para passar a fazê-lo em farmácias dos Açores. Não tenho qualquer dúvida. A proximidade das farmácias permite grandes ganhos para aquele que é o nosso fim último, a saúde dos nossos utentes. Não tenho qualquer dúvida que o caminho deverá ser esse: permitir que a medicação hospitalar possa ser levantada na farmácia de oficina onde a pessoa habitualmente levanta a sua outra medicação. Seria menos tempo perdido, menos custos com deslocações e até libertava os serviços farmacêuticos hospitalares dessa tarefa. 


Berto Cabral concentra competências que no continente estão dispersas pela DGS, Infarmed, Entidade Reguladora da Saúde e Serviços Partilhados do Ministério da Saúde

Os governos dos Açores e da República iniciaram conversações com vista à reciprocidade no tratamento de doentes. O que se pretende?
Já existem protocolos estabelecidos com o SNS para que as especialidades que não existam na Região sejam acompanhadas no Continente sem custos. A verdade é que a circulação das pessoas é, cada vez mais, nos dois sentidos. Há imensas pessoas do Continente que estão cá em trabalho, outras pelo aumento do turismo, e que acabam por necessitar muitas vezes de cuidados de saúde. O objectivo do aprofundamento da reciprocidade é tratarmos todo o cidadão nacional da mesma forma, independentemente do local onde essa pessoa se encontre, seja um açoriano no Continente ou um continental nos Açores.

E a cooperação na área de recursos humanos?
Também há protocolos para a colaboração de médicos do SNS. Fixar médicos de algumas especialidades aqui na Região é muito mais difícil, há especialidades que têm muito poucos especialistas residentes na Região. A Região tem três hospitais, com tudo o que representam em termos de prevenções, de presenças físicas, para um universo de 236.000 pessoas. Algumas especialidades acabam por ter um número baixo de médicos.

Como vai o Governo cumprir a promessa de garantir médico de família e enfermeiro de família a cada açoriano?
O enfermeiro de família é um projecto que vai começar agora a ser trabalhado com a Ordem dos Enfermeiros. Os Açores formam enfermeiros, é verdade. A Universidade dos Açores tem duas escolas, uma em Ponta Delgada e a outra em Angra do Heroísmo. Em determinada altura, parecia haver excedentes, agora é exactamente o contrário, porque as necessidades são maiores. Os rácios em cada serviço têm vindo a aumentar. É importante colmatar e ter as dotações seguras em cada um dos serviços.

É preciso contratar no Continente?
Neste momento, já há incentivos à fixação dos médicos. O Governo Regional dos Açores também vai criar um sistema de incentivos para os enfermeiros. Com os lares e clínicas privadas, nas ilhas maiores há mais lugares para empregar enfermeiros. Mas, depois, as ilhas mais pequenas começam a ter maior dificuldade em atrair os enfermeiros. Portanto, o Governo Regional quer criar um sistema de incentivos à fixação dos enfermeiros nessas ilhas sem hospital, um pouco à semelhança do que já acontece com os médicos, onde há incentivos à fixação, alguns apoios, uma majoração do vencimento. O regime de incentivos varia em função das ilhas. Há ilhas onde a majoração do vencimento base é superior a outras. Também é preciso avaliar se esses incentivos estão a ter ou não efeito e eventualmente proceder a algumas alterações.

E os médicos de família?
Continuamos a ter algumas ilhas com muita dificuldade em atrair médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar. Há ilhas, como a Graciosa e as Flores, que só têm um médico no seu quadro. Para colmatar a necessidade de médicos, recorre-se a prestadores de serviços, que são colocados através de empresas nos centros de saúde nessas ilhas. Mas, algumas vezes, não são médicos especialistas. Outras vezes ficam muito pouco tempo, é difícil estabilizar...

Não chegam a criar relação com as famílias.
É mais difícil criar relação. Por outro lado, essas ilhas pequenas podem ter quatro, cinco mil pessoas, mas têm internamento, têm urgência, acaba por existir alguma complexidade no trabalho. O especialista em Medicina Geral e Familiar não é só para dar consultas. 

A livre escolha de hospital, prevista no Programa do Governo, é para levar a sério?
Actualmente, já é possível o açoriano escolher o hospital. Os custos suportados é que são sempre só até ao hospital mais próximo. O que, na prática, na grande maioria das situações, acaba por condicionar a livre escolha, porque tratando-se muitas vezes de pessoas sem grandes recursos acabam por ter de ser seguidas no hospital que fica mais perto da sua área de residência. Os Açores têm três hospitais. Há uma relação de proximidade de Santa Maria com São Miguel; São Jorge e Graciosa com a Terceira; e depois Pico, Flores e Corvo com o Faial. Mas a verdade é que sabemos que há ilhas que têm menos especialistas de determinada área, nas quais o tempo de resposta pode ser maior. Também há pessoas que prefeririam ser acompanhadas noutras ilhas, porque têm lá algum familiar e isso até lhes dá mais conforto. Quando se fala em livre escolha, é exactamente a possibilidade de a pessoa escolher o hospital e não ter um sobrecusto com essa opção.

E a meritocracia na avaliação dos serviços, também prevista no Programa do Governo? É só para o financiamento dos serviços ou poderá chegar à remuneração dos profissionais?
Os Açores têm um sistema de contratualização e de objectivos que são estabelecidos  anualmente para cada unidade de saúde e que é devidamente avaliado e, depois, o financiamento também é feito em função do cumprimento ou não de determinados objectivos. Relativamente à questão que me coloca sobre os profissionais, de haver algum tipo de prémio ou de gratificação por uma maior produtividade, é uma matéria que eu deixaria para uma decisão superior à minha. A existir, eu deixaria para os membros do Governo, aquando da decisão que for tomada relativamente a esta matéria.


Berto Cabral já conhecia a realidade da Direcção Regional da Saúde

Os farmacêuticos são muito orgulhosos da sua formação, dizem que o seu curso é muito completo. Lembra-se do que aprendeu na faculdade em alguma circunstância do exercício das funções de director Regional da Saúde?
Posso dizer-lhe que houve momentos em que me lembrei d​e uma cadeira da faculdade, por causa da pandemia. O director Regional da Saúde já teve de aparecer muitas vezes, já teve de falar muitas vezes para órgãos da comunicação social, já teve de dar muitas conferências de imprensa. E eu, na faculdade, tive a cadeira de opção de Comunicação em Saúde. Já me consegui lembrar dessa cadeira várias vezes e até de alguns conceitos, de algumas ideias, de alguns princípios que se abordava. Mas isto não tem só a ver com as funções. A importância da comunicação obviamente que se coloca no desempenho destas funções, mas para quem, como eu, vem da Farmácia Comunitária, é fundamental forma como nós comunicamos diariamente com os nossos utentes. São duas dimensões completamente diferentes de comunicação, mas eu não vou dizer que uma é mais importante do que a outra.

Numa farmácia, cada utente tem as suas dúvidas e necessidades.
A forma como nós comunicamos, doente a doente, a sua situação, como essa pessoa tem de fazer a sua medicação, como tem de lidar com a sua saúde, ou com o problema de saúde que a afecta, para aquela pessoa é tudo o que importa. E nós, quando estamos na farmácia, precisamos dessa sensibilidade, essa atenção em comunicar bem, para que a mensagem efectivamente passe.

Como se sentiu a comunicar à população durante a pandemia?
Aqui é uma outra dimensão. Se comunicar em saúde é difícil, comunicar nas funções de dirigente da saúde num contexto de pandemia, com a população muitas vezes assustada, com o impacto que tudo isto teve na vida de todos, exige muito de nós. O processo de vacinação, por exemplo, foi muito complexo. Todas as pessoas desejavam ser vacinadas, mas numa fase inicial não havia vacinas para todos. E tentar explicar às pessoas como é que o processo tinha que decorrer, quais eram os critérios, quais eram as prioridades… muitas vezes não foi fácil!

A pandemia apanhou-o ao balcão da farmácia, na Praia da Vitória. Recorda-se daquela aventura do álcool gel? Produziu uma barbaridade de litros, não foi?
Foram muitos, muitos litros. Confesso que agora já nem lhe sei dizer quantos. Na semana antes do primeiro confinamento, o álcool gel rapidamente esgotou na ilha, no país, por todo o lado. Eu na altura era delegado da ANF aqui e recordo-me de alguém num grupo comentar da possibilidade de ser feito álcool gel na farmácia. Poderia ter sido só mais uma mensagem num grupo e eu ter lido e ignorado. Mas achei interessante. Há coisas, ou há momentos, em que nós, farmacêuticos, temos de ser consequentes com a nossa formação, aquilo para que estamos capacitados, o que nos compete fazer.

É o caso dos manipulados.
Eu tive a sorte ou a felicidade, no início da minha carreira profissional, de trabalhar cinco anos numa farmácia que sempre valorizou a área dos manipulados. Aprendi com isso e criei esse gosto. Quando comprei a farmácia, começámos logo a fazer vaselinas saliciladas, suspensões orais de trimetoprima [antibiótico], aquela pomada de enxofre para a sarna, que de vez em quando há uns surtos por cá… Enfim, os manipulados que tinham procura, nós começámos a fazer.

Já o álcool gel era um produto industrial, que subitamente ficou esgotado...
Quando surge a tal mensagem sobre a possibilidade de ser manipulado na farmácia, contactei o LEF [NR: Laboratório de Estudos Farmacêuticos, da ANF] e pedi apoio. Contactei fornecedores para encontrar as matérias-primas, as embalagens, tudo o que era necessário, e pedi apoio à outra farmacêutica da equipa. Os pedidos começaram a ser muitos, muitos mesmo, porque não havia álcool gel em lado nenhum na ilha Terceira. Enviámos álcool gel para outras ilhas, Graciosa, São Jorge, o Pico também. Naquela semana antes de tudo fechar, uma semana completamente louca para todas as farmácias do país, começaram a chover telefonemas, e-mails, Whatsapps com pedidos de informação sobre o álcool gel e os preços e se fazíamos...


O farmacêutico Berto Cabral produziu milhares de litros de álcool gel e ofereceu um ventilador ao hospital da ilha Terceira

O que o levou a fazer uma doação com o lucro dessa actividade?
Sabe… quando se começou a viver a pandemia, quando chegaram as imagens dos hospitais em Itália, fiquei muito sensibilizado. Pessoas a morrer e a sofrer, muitas vidas condicionadas, outras áreas de negócio completamente paradas. Perceber que nós estávamos a ganhar dinheiro com o desespero das pessoas, o medo que as pessoas viviam, num produto que era claramente um extra… A farmácia tinha a sua vida, tinha a sua organização, não dependia daquelas vendas. Eu entendi que deveria dar o retorno dessa actividade à sociedade, ou à comunidade. E então contactei um vendedor de equipamentos hospitalares e ofereci um ventilador ao Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira. Também me satisfez, confesso, devido às acusações de que a farmácia estava a ganhar muito dinheiro, a explorar as pessoas. A verdade é que as pessoas não sabem, mas há regras legais para a marcação do preço dos manipulados. Produzir uma embalagem, um frasquinho de álcool gel, é completamente diferente de uma unidade industrial fazer milhares em produção contínua. Mas o que pesou na decisão foi a economia da farmácia não estar estruturada para depender das vendas daquele produto. Senti que deveria dar o retorno à comunidade, por via da oferta de um equipamento que poderia, ou poderá, nalgum momento, ser determinante para salvar vidas.
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