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4 agosto 2022
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de André Oleirinha Vídeo de André Oleirinha

Surfista campeão por acidente

​Nuno foca a energia nas possibilidades. Criou a quarta associação de surf adaptado, em todo o mundo.​

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Não queremos saber se é difícil, apenas se é possível». A frase, estampada nas costas da t-shirt azul da SURFaddict, é o slogan da Associação Portuguesa de Surf Adaptado, e o lema de vida do seu fundador, Nuno Vitorino. Traduz a aprendizagem que retirou da deficiência: não vale a pena perder tempo com o que não funciona, antes focar as energias nas possibilidades. «A possibilidade de sermos felizes e termos uma atitude positiva perante a vida, mesmo sem a capacidade física de fazer tudo. Um sorriso, às vezes, muda tudo».

Nuno perdeu a vida como a conhecia, apenas num segundo. Uma brincadeira com uma arma de fogo, quando tinha 18 anos, tornou-o tetraplégico. A bala disparada involuntariamente por um amigo provocou uma lesão na espinal medula, que lhe retirou a mobilidade dos membros inferiores, e dificultou os movimentos dos braços e das mãos. À distância de 27 anos, o balanço «não é tão trágico», garante. Nuno prefere olhar para o que ganhou. E não foi pouco. Fundou a primeira associação de surf adaptado da Europa, a quarta no mundo inteiro, que já permitiu a experiência do surf a mais de dez mil pessoas com deficiência. Dedica a vida a inspirar quem o rodeia, em palestras onde partilha as ferramentas que tem construído para ultrapassar as dificuldades, e a maneira como encara a vida.


Além de gerar confiança nas próprias capacidades, o surf adaptado ensina a confiar em quem está na água a apoiar, os voluntários

O acidente aconteceu a 10 de maio de 1995. Nuno nunca sentiu «uma reação de choque», todo o seu ser estava focado na recuperação, com inocente». Durante dois anos, tentou fisioterapia, acupuntura, tudo o que pudesse libertá-lo da cadeira de rodas, «até bruxaria». Um dia, uma médica do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão disse-lhe: «Nuno, esquece, tu não voltas a andar. Otimiza aquilo que ainda mexe, os braços». A frase espoletou uma reviravolta. «Acabei com tudo o que estava vocacionado para a deficiência, e passei a olhar para o perfil funcional», conta. Trocou as terapias pelo desporto, e tornou-se atleta paraolímpico, na modalidade de natação.

Sem pensar muito, Nuno aceitou o convite de um treinador de atletas paraolímpicos para entrar na alta competição. Seis meses depois, participava no Campeonato da Europa, na Suécia, e em 2004 estava nos Jogos Paraolímpicos de Atenas. Foi o quarto melhor atleta do mundo em natação adaptada, em 2000, e de surf adaptado, em 2018. Mais do que otimizar os braços, o desporto formou-lhe o caráter, deu-lhe concentração, entrega, disponibilidade. «E uma coisa muito importante, que eu transmito a quem está à minha volta: nunca digam que não conseguem. Eu sou a prova viva de que se consegue».

 Nuno foi o quarto melhor atleta de natação adaptada do mundo, em 2000, e de surf adaptado, em 2018

A natação fez parte da sua vida entre 1998 e 2006. Saiu «por cansaço» e porque queria tempo para dedicar-se à filha acabada de nascer. Em 2009, na praia de Carcavelos, a mesma onde funciona a SURFaddict, sentiu «o chamamento do surf». Ele, que «só queria surfar», acabou por tornar Portugal o quarto país do mundo a disponibilizar o ensino de surf adaptado, depois dos EUA, do Brasil e da Costa Rica. «Entusiasma-me o novo», confessa, e não se deixa intimidar pelas dificuldades. «Como é que vamos fazer isto? A primeira resposta é: não sei, mas vamos fazer. Avançamos por tentativa e erro, e temos errado pouco, felizmente, porque o erro aqui paga-se caro. Aos treinadores que formo, digo: se tiverem dúvidas, não façam, porque podemos estar a agravar patologias», explica.

A SURFaddict faculta experiências de surf a pessoas com deficiência, desde 2012. Há quem venha todos os fins de semana, outros participam nos eventos pontuais que decorrem por todo o país. A participação é gratuita. «É o projeto de que mais me orgulho», confessa. «O surf adaptado muda vidas». Porquê? Nuno responde com o que chama os valores do surf: «paciência para esperar a onda certa; aprender que quando cais tens de te levantar, não vale a pena queixares-te; resiliência para continuar». Nuno surfa ondas de três e quatro metros. A sensação de superação é brutal. «Se eu consigo fazer isto, consigo fazer qualquer coisa!». Além de gerar confiança nas próprias capacidades, o surf adaptado ensina a confiar em quem está na água a apoiar, os voluntários. «É uma coisa fantástica, são valores úteis à vida».


«Não queremos saber se é difícil, apenas se é possível» é o lema da SURFaddict e do seu fundador

Quando teve o acidente, Nuno Vitorino frequentava o 9.º ano de um curso técnico-profissional. Os estudos não lhe interessavam. Mais tarde, licenciou-se em Relações Internacionais. Na altura, ter uma namorada com três mestrados contribuiu para a decisão de voltar a estudar. «Pensei: ou dou corda aos sapatos, ou dá-me ela a mim», conta, a rir. Em 1997, tirou a carta de condução e sentiu-se dono de si mesmo. Arranjou um estágio nos serviços gerais da Câmara Municipal de Lisboa, hoje é técnico superior. «Na vida, como no desporto, tudo é possível, mas é preciso trabalhar para conquistar as coisas», diz. Isso mesmo transmite a quem o rodeia. Nada lhe dá mais prazer do que motivar as pessoas a acreditarem nelas próprias e irem atrás dos seus sonhos, sejam eles escalar o Evereste numa cadeira de rodas, fazer um Ironman, considerada a prova mais difícil do mundo, ou ser CEO de uma empresa. «Vai, trabalha para isso», diz-lhes. É o principal ensinamento que quer transmitir à filha de 16 anos. A vida mostrou-lhe que a perfeição não existe e que «todos temos deficiências, visíveis ou não». Acredita mesmo que é mais fácil combater as deficiências visíveis, que se assumem.

Desde 2014, também dá aulas de desporto adaptado, em instituições universitárias. Com o seu exemplo de vida, gosta de ajudar a reduzir o estigma que rodeia a deficiência: «a cadeira de rodas é a primeira coisa que salta à vista», sabe bem, e por isso maior é o prazer de chegar a uma sala de aulas e apresentar-se: «Bom dia, sou o vosso professor de surf». 

Hoje, assume como normal o facto de não andar, e aprendeu a gostar da cadeira de rodas, «da mesma maneira que gostas do teu marido, que é uma ótima pessoa, apesar de ele ter um nariz muito grande». As limitações físicas não o impedem de ser um atleta, antes fazem parte do atleta que é. O importante é o desempenho e não ter um «corpo perfeito de Adónis». «O desporto não quer saber se estás numa cadeira de rodas, o desporto não discrimina, só quer saber o que vais dar de valor». O mesmo acontece no amor. Ser tetraplégico não impediu Nuno de ter relacionamentos ou de ser pai. «A forma como nos posicionamos na vida e olhamos nos olhos da outra pessoa é que nos torna sexy, não importa o pedaço de ferro que existe à minha volta». No fim do caminho, quer poder dizer aos netos: «foi uma vida do caraças!»
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