Astro Luminoso, Sol, Monte Sagrado ou Serra da Lua. A magia desta terra no coração dos homens é patente nestes nomes, com que a baptizaram ao longo dos séculos. Sintra sempre foi uma inspiração para poetas, escritores, viajantes e para todos os amantes, com uma beleza natural que parece saída das histórias de J. K. Rowling, mãe literária do mágico Harry Potter.
O clima é sempre incerto, o que fez o geógrafo Al-Bacr, logo no século X, caracterizar Sintra como «permanentemente mergulhada numa bruma que se não dissipa». É nesse nevoeiro misterioso que se revelam as musas, como aconteceu a Luís de Camões no canto III de Os Lusíadas:
E, nas serras da Lua conhecidas
Sobjuga a fria Cintra, o duro braço.
Cintra onde as Náiades escondidas
Nas fontes, vão fugindo ao doce laço:
Onde Amor as enreda brandamente,
Nas águas acendendo fogo ardente.
Das fontes da vila às belas praias que nos esperam a poucos quilómetros, o farmacêutico Luís Brousse Gato leva-nos ao passado de Sintra, mas também da sua família. «Sem dúvida, o que me une a esta região é mais do que o meu trabalho ou do que a minha vida. Aqui, tenho laços de sangue».
Os laços entre a família Brousse e Sintra começaram logo no início do século XX. O primeiro foi obra de Theodore Dumas Brousse, engenheiro mecânico, inovador, aventureiro e apaixonado, tetravô do nosso anfitrião. Nasceu em França e veio para Portugal com a missão de apoiar Gustavo Eiffel no projecto da linha dos caminhos-de-ferro da Beira Baixa. «Deve ter-se apaixonado por uma portuguesa e aqui ficou», conta o tetraneto. Teve dois filhos, viajou e trabalhou muito. Entre outros projectos, esteve na construção da ponte D. Luís, no Porto, e do túnel do Rossio, em Lisboa.
Seja pela bruma, o microclima, ou qualquer outro facto natural ou mágico, a verdade é que os homens foram sempre atraídos para este lugar. A ocupação de Sintra remonta à fase final do Paleolítico, como comprovado pela descoberta de utensílios de tipo microlaminar, deixados pelos primeiros caçadores. Esta actividade é hoje proibida. Em 1994, foi criada a área protegida do Parque Natural de Sintra-Cascais, destinada a preservar as espécies e a paisagem da pressão urbanística, numa área de 14.583 hectares. No ano seguinte, a Serra de Sintra foi elevada a Património da Humanidade pela UNESCO. Muitas plantas, mamíferos e aves têm aqui o seu último reduto de sobrevivência.
A combinação de obras da Natureza e da Arquitectura faz de Sintra um lugar encantado. A paisagem é rica em belos palácios, palacetes, conventos de meditação, igrejas e capelas, semeados entre penhascos e fontes. Há muitas casas senhoriais impecavelmente conservadas, com os respectivos hortos e bosques.
Luís Brousse Gato convida-nos para o Palácio de Monserrate, belo exemplar da arquitectura romântica, em estilo neo-árabe. Já foi a casa de férias do milionário inglês Francis Cook, primeiro Visconde de Monserrate por reconhecimento do Rei D. Luís. Sir Francis fez fortuna com o comércio têxtil saído da Revolução Industrial. Era um homem viajado, à frente de uma companhia com relações comercias com o mundo inteiro, no auge do império britânico.
Tornou-se um grande coleccionador de arte e um dos primeiros proprietários de telefone em Portugal. Mas uma crise no sector obrigou a família Cook, tempos depois, a vender praticamente todo o recheio do palácio. A cozinha foi restaurada com a traça original. Daquele tempo ficaram ainda os radiadores, os interruptores de luz, os papéis de parede decorativos, os azulejos hispano-árabes e um relógio de madeira com embutido de tartaruga, cujo inventário do palácio atestava ser da época de Luís XV.
O Palácio, assim como o Parque e a Tapada de Monserrate, está nas mãos do Estado português desde 1949. No total, são 143 hectares de pura elegância. Nos últimos anos, o edifício foi alvo de obras de recuperação, com inauguração oficial em 2010. Na biblioteca, há uma placa comemorativa do restauro: 5 de Junho de 2009, data em que se reuniu aqui o Conselho de Ministros presidido por José Sócrates. No imenso jardim do palácio, para além do arco, vindo da Índia, percorremos os ancestrais fetos-arbóreos, os cactos mexicanos, a estufa e os viveiros, o jardim japonês. A maior árvore é Araucária-de-Norfolk, com 45 metros de altura.
À porta do Tivoli Palácio de Seteais Hotel, ficamos a conhecer outro nó da família com Sintra. «Os meus pais casaram-se aqui», conta Luís. Abrimos os olhos de surpresa. Pouco tempo depois, quando entramos num dos salões bem decorados deste hotel, património histórico de Sintra, agora nas mãos dos tailandeses Minor Hotel Group, desvenda-se mais um laço: «Os meus tios festejaram aqui as bodas de ouro». Luís é um homem de família. Isso dá-lhe confiança para continuar o projecto delineado pelos pais há mais de trinta anos – dirigir a Farmácia Dumas Brousse, em Mem Martins. Ainda hoje os mais velhos associam ao seu avô, Carlos Dumas Brousse, braço-direito dos autarcas de Sintra durante 47 anos.
O nosso guia passou a infância na Praia Grande. «Hoje está tudo muito diferente», declara, nostálgico. Resistiu o hotel, cenário de vários filmes, como o mítico O Estado das Coisas, de Wim Wenders, que em 1982 ganhou o Leão de Ouro do Festival de Veneza. A sua piscina de água salgada protegeu muitas vezes Luís em criança das ondas rebeldes do mar. A Praia Grande é agora famosa pelos campeonatos de surf. Mas continua a atrair muitas famílias no Verão. «Houve obras de remodelação que ordenaram mais o espaço, com lugares de estacionamento e melhores acessos», relata o farmacêutico.
Na freguesia de Colares, encontramos a aldeia de Azenhas do Mar, plantada numa arriba. A praia, lá em baixo, oferece-nos outra piscina oceânica. A azulejaria nas fachadas, algumas com poemas originais, transforma o passeio numa permanente surpresa. Presença habitual nos roteiros turísticos, Colares distingue-se pela cultura vinícola, da pesca e mariscaria, principalmente de percebes e lapas. Ali perto, o Cabo da Roca, situado 150 metros acima do nível do mar, marca o ponto mais ocidental da Europa. Um padrão em pedra traz-nos de volta a Camões.
Aqui onde a terra se acaba e o mar começa.
Depois do passeio, hora do lanche. O nosso farmacêutico leva-nos a contemplar a vista da casa de chá Dona Maria, a provar as broas de mel da pastelaria Gregório, a degustar os travesseiros da Casa Piriquita e a saborear as queijadas da Casa do Preto.
Pelo caminho, conhecemos a Fonte da Sabuga, fontanário do século XVIII, cuja água era conhecida pelas suas propriedades curativas. Passamos, depois, pela mística Quinta da Regaleira e, curvas e contracurvas mais tarde, pelo Palácio Nacional, «conhecido, antigamente, como Paço Real, utilizado pela família real até ao fim da monarquia». Lá em cima, o monumental Palácio da Pena, vigia-nos sempre atento. Antes do regresso, ainda vamos à pequena aldeia de Almoçageme.
Ficamos a conhecer o atelier de arquitectura e decoração Coisas da Terra. Nesta antiga adega já nasceram projectos para os quatro cantos do mundo, de Viana do Castelo a Nova Iorque, Madrid a Marraquexe. Ficamos deslumbrados com a colecção de objectos, que inclui máscaras tribais e um coche em madeira usado nos casamentos indianos.
«Vamos saborear o melhor peixe fresco da região», anuncia Luís Brousse Gato para o almoço do dia seguinte. O Restaurante D’Adraga, na praia com o mesmo nome, é mais pequeno do que a sua fama. Por isso, «está sempre cheio, em especial aos fins-de-semana». Recebe-nos o senhor Jorge, que conhece o farmacêutico «desde pequeno» e o serve sempre com o mesmo carinho e cuidado. Mais do que a fama, os laços da família à terra são uma fonte de proveito que atravessa gerações.