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2 novembro 2023
Texto de Irina Fernandes Texto de Irina Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Vídeo de Diogo Alves Vídeo de Diogo Alves

Servir com o coração

​​​​​​​Portador de dificuldade intelectual e do desenvolvimento, Bruno Silva, 43 anos, trabalha num café solidário e faz uma vida normal.​

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​«– Vai desejar o sumo fresco ou natural, senhor?», pergunta Bruno, por detrás do balcão. Ao ouvir a escolha do cliente, apressa-se a dar resposta ao pedido. Fá-lo com autonomia, prontidão e olhar atento. «- Aqui está a sua bebida.», chama minutos depois.

Em cada ação ou palavra dita, Bruno Silva, de trato afável e meigo, é perfecionista e apaixonado.

«Quando aqui chegou, o Bruno deixava transparecer o seu carisma, mas estava concentrado na tarefa que lhe estava atribuída, de lavar e arrumar loiça. Presentemente já não é assim», começa por descrever, orgulhosa, Dídia Duarte, técnica de reabilitação e inserção social, uma das responsáveis que acompanha Bruno e o restante grupo de jovens que trabalham no Café Joyeux.

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A residir no Cacém, Bruno Silva vai todos os dias de comboio até ao Parque das Nações, em Lisboa, onde trabalha

O frenesim na sala adensa-se. É hora de almoço, aqui e ali vão chegando homens de fato e gravata, e mulheres de roupas e cabelos elegantes. Bruno não se deixa intimidar. Iniciou o turno às 8h e, após as 13h, ainda se mantém focado e empenhado na lida do café. É o mais ativo e enérgico do grupo de colaboradores ao serviço.

«Hoje tirei cafés, galões, capuchinos, servi sopas e fiz sandes. E fui eu que fiz tudo!», congratula-se. É também o mais sorridente.

«Porque é que sorrio? Porque é bom. E assim toda a gente sorri!», responde, bem-disposto. O Café Joyeux, no Parque das Nações, em Lisboa, integra uma rede de cafés-restaurantes solidários e inclusivos em Portugal. A marca distintiva desta rede é formar e empregar pessoas com dificuldades intelectuais e do desenvolvimento.

Bruno voltou a acreditar em si e a ter esperança no futuro. Nas várias passagens por outras empresas, «ao fim de poucos meses pediam-me para «esperar» ou ir embora «porque teriam de passar a pagar-me um ordenado». No Café Joyeux, Bruno teve a oportunidade pela qual há tanto ansiava: um emprego estável e remunerado. Pela primeira vez assinou um contrato de trabalho sem termo. «Eu já disse que daqui não saio!», afirma, de sorriso aberto. «Estar aqui é tão bom!», suspira.

Era muito novo quando a mãe, Rosa Silva, 66 anos, e o pai, António Silva, 78 anos, percebe- ram que algo não estava bem no seu desenvolvimento. «Ele começou a falar e a andar mais tarde, aos três anos», conta a mãe, ressalvando que «nunca lhe foi diagnosticada uma doença, só sabemos que tem dificuldades cognitivas. Tem 60% de incapacidade».

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Os pais de Bruno, Rosa e António Silva, estão orgulhosos com o percurso de autonomia do filho

Bruno nasceu no Cacém e, apesar da sua condição, cedo deu provas de ser um rapaz bra- vio. Desde que iniciou funções no Café Joyeux, o caminho foi sempre a subir. «Ele hoje trabalha nas várias áreas da cafetaria: tira cafés, atende os clientes, prepara as sandes ou serve a sopa», destaca Dídia Duarte. «São vários talentos que estão a ser postos em prática. Ele sente-se mais confiante e sabe que tem uma equipa a apoiá-lo».

«O Bruno é muito resiliente. Para ele, a palavra «não» não existe. Ele pode até transmitir algu​​ns receios, mas não deixa de lutar para os ultrapassar», revela Dídia Duarte. Bruno é um trabalhador dedicado e que revela polivalência. «Inicialmente, ele tinha medo de trabalhar na caixa registadora devido à dificuldade em fazer os trocos. Hoje já vai. A sala de restauração tem uma supervisora que presta apoio, caso seja necessário. E isso é demonstrativo de toda a sua luta e resiliência», completa Dídia Duarte.

Bruno prima por ser pontual. «Gosto de chegar a horas. Não gosto de chegar atrasado. Gosto de cumprir os horários», diz, assertivo. Aqui e ali, olha para a lente fotográfica e a câmara da Revista Saúda e sorri, orgulhoso. Sabe que o motivo da reportagem é revelar gente de fei- tos grandiosos como os que protagoniza diariamente atrás do balcão ou no regresso a casa. Todos os dias, desloca-se sozinho, sem receio de multidões ou de greves: «apanho o comboio das 6h48». «Inicialmente, quando estava atra- sado, ele ligava à mãe para ela me avisar. Agora já não o faz», conta Dídia.

Percorre escadas, corredores e, ao contrário do que se poderia antever, Bruno «nunca se perdeu».

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A cumplicidade entre Dídia Duarte e Bruno Silva revela-se a cada olhar. «Deram-lhe esta oportunidade e ele agarra-a com a vida», explica a  técnica de  reabilitação e reinserão social

Com treino, orientação e acompanhamento, arriscou, aprendeu e tornou-se autónomo. «Se existir uma greve nos transportes públicos, ele sabe apanhar um autocarro e chega ao trabalho. Ou seja, aprendeu a lidar com imprevistos. Ele sabe resolver o problema e sozinho!», confirma Dídia Duarte, ressalvando que «todas as competências, da gestão emocional à gestão de conflitos, continuam a ser trabalhadas, mas com menor necessidade de intervenção da nossa equipa técnica».

Para o pai, António Silva, tudo se deve ao entusiasmo que o filho agora sente. Parece que rejuvenesceu. «Ele vai para o trabalho sempre alegre, e regressa a casa satisfeito. Não se pode tirar-lhe este trabalho. Faz parte dele, sabe?», conta o antigo bancário. A mãe concorda que este emprego foi transformador e marca o início de um novo ciclo na vida do filho. «Ele esteve bastante tempo em casa e isso andava-lhe a fazer muito mal. Andava triste e agora já não, vem trabalhar com vontade. Às vezes, em tom de brincadeira, pergunto-lhe se não quer ficar em casa, e ele responde logo que não».

Continuar empregado neste espaço «seria ótimo». «Antigamente não havia nada disto… o Café Joyeux é ótimo para todos. Era bom que abrissem mais cafés destes em Portugal, porque há muitos jovens que necessitam de trabalho», defende Bruno. Ao seu ritmo, sempre a sorrir, vai conquistando o mundo.

Bruno é uma pessoa muito persistente e responsável.  Deram-lhe esta oportunidade e ele agarra-a como se fosse a sua vida!», asse- vera Dídia Duarte.

14h03. A sala de refeições está mais calma, são muitos os lugares vazios. «Eu não estou can- sado!», garante Bruno a poucos minutos de ter- minar o seu turno. Coloca leite no latão, aquece a bebida com o tubo de vapor da máquina de café, e faz sair mais um pedido: «- Senhor, aqui tem o seu café pingado!». Antes de se ir embora, não se esquece de cumprir a última tarefa: assinar o livro de assiduidade.

Amanhã será um novo dia e Bruno vai voltar.​

 

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