Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
4 janeiro 2024
Texto de Teresa Oliveira (WL Partners) Texto de Teresa Oliveira (WL Partners) Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de Duarte Almeida Vídeo de Duarte Almeida

Pedalar o cancro com amor

​​​Apanhado de surpresa por um linfoma, Micael somou exercício físico, espírito positivo e gratidão à terapia que recebeu.​

Tags
No início de 2022, Micael Ferreira começou a sentir-se mal. Depois de um período muito intenso de trabalho sem interrupções, sem sequer poder fazer o luto da mãe, os projetos onde estava envolvido terminaram todos ao mesmo tempo. Parou, finalmente. E sentiu instalar-se «uma ansiedade muito grande, uma enorme debilidade psicológica», que associou a um estado depressivo ou a um luto tardio.

Procurou um psiquiatra, foi medicado, e não melhorava. Aliás, piorava. Num processo que durou cerca de mês e meio, os médicos que o foram atendendo não percebiam o que se passava. A certa altura, diagnosticaram-no com febre da carraça. «Fui indo, fui indo, fui indo. Até que comecei a emagrecer muito, a ficar amarelo, deixei de andar e fui mesmo abaixo», conta. Finalmente fez uma TAC e imediatamente se percebeu o que lhe estava a acontecer: um linfoma de Hodgkin, já com metástases. No dia seguinte dava entrada no IPO – Instituto Português de Oncologia, onde ficou internado.


Artista plástico e intérprete de dança contemporânea, nos últimos anos tem investido mais tempo no ciclismo
 
No dia 4 de dezembro, fez um ano que Mica, como é conhecido, terminou os 12 ciclos de quimioterapia que lhe foram prescritos. Está em remissão total. Mesmo antes de terminar o tratamento decidiu fazer uma prova de ultraciclismo (corridas de bicicleta de longa distância) pelos Pirenéus – uma duríssima travessia feita em três dias, que percorre mais de 1.000 km, com etapas noturnas e abundância de subidas de montanha. Começou a sentir-se «esquisito» ainda em Portugal. «Associei ao stress», recorda. «Lá está, mais uma vez a parte psicológica, sempre a achar que não é físico».

Com febre, às 20h estava na linha de partida para a primeira prova. «Ainda fiz 300 km», conta, mas «depois de uma subida de sete horas, uma subida sofrida, pensei: “bem, vou ter de repousar”». Absolutamente exausto, entrou no primeiro hotel que lhe apareceu: «era um hotel caríssimo, à beira da estrada. Só queria descansar». Dormiu um par de horas e, apesar de ainda se sentir doente, não lhe parecia impossível continuar. A prova tinha implicado um grande investimento físico, psicológico e monetário. Quando encarou a subida íngreme e de muitas horas que o aguardava, percebeu que não ia conseguir. No dia seguinte fez um teste à COVID-19 e o resultado positivo revelou o motivo que o travara no primeiro dia da prova.


Micael anda de bicicleta desde os três anos

Desde os três, quatro anos que anda de bicicleta e já há alguns anos praticava o ciclismo de modo mais intenso. «Comecei a investir nisso porque descobri que me dava algum prazer», explica. Em excelente forma física e praticante de alimentação vegan, o seu corpo escondeu quase todos os sinais da doença. Tinha apenas uma tosse – que na realidade era uma metástase grande no timo – a que não deu importância, tal era o foco nos projetos em que estava envolvido. «Sentia-me bem», lembra. Quando descobriu que estava doente, procurou gerir a doença de uma forma inteligente e positiva. Com uma história familiar onde as doenças sempre estiveram presentes, procurou inspiração na irmã, que aos quatro anos teve um linfoma e depois uma leucemia, já curados, e na mãe, diagnosticada com doença de Crohn (doença inflamatória do trato gastrointestinal) aos 30 anos.

«Acho que foi o exemplo da minha irmã», refere, «e também o facto de a minha mãe ter falecido (com COVID-19), ter sofrido tanto, e de eu perceber que havia ali uma série de comportamentos e de lacunas que ela cometia e que talvez não a ajudassem», diz. Uma constatação que o levou a decidir usar um processo de «pensamento inverso: “OK, isto aconteceu desta maneira com a minha mãe, vou tentar fazer o oposto”».

Outra ajuda veio do espírito positivo que cultiva, encarando os tratamentos «como um processo de cura: tinham de acontecer e ser aceites da melhor maneira para que as coisas pudessem correr bem». O pai do seu melhor amigo, ex-enfermeiro de helicópteros do INEM — Instituto Nacional de Emergência Médica, reforçou esse caminho. «Se tratares o cancro com amor, ele vai-se embora com amor», disse-lhe, numa altura em que o sentiu mais em baixo. «Levei essa frase para sempre, porque acho que é mesmo importante, não só nesta parte do cancro, mas em tudo na vida. Se tratarmos as coisas com amor, uma coisa negativa pode transformar-se noutra melhor e mais bonita».


A bicicleta foi uma terapia importante. Era algo que o motivava

A bicicleta, sempre ela, foi outra terapia importante. Inicialmente muito debilitado, Micael sentiu necessidade de arranjar algo que o motivasse. Artista plástico e intérprete de dança contemporânea, nos últimos anos tinha começado a investir mais tempo no ciclismo. «Na altura em que fiquei doente tinha comprado uma bicicleta nova» e, por isso queria «mesmo muito» voltar a pedalar. «Esperava dois ou três dias depois do tratamento e fazia uns dez, 15 km de bicicleta, suava e purgava muita coisa má do meu corpo». No dia seguinte estava de rastos, mas «os dias que se seguiam eram muito, muito bons».

No Instagram, criou a página "Cycling to Cure Cancer", com uma vertente solidária, para desmistificar a doença e ajudar quem estivesse numa situação semelhante à sua. «A ideia de superação passa muito também por uma imagem boa da vida, para além da dor» e quis «mostrar um lado bom e positivo, que também existe». À porta do IPO, com amigos, surgiu a ideia de apoiar o Instituto de alguma forma. Angariaram merchandising, divulgaram a ideia, venderam o material (maioritariamente ligado ao ciclismo) que lhes tinha sido doado e entregaram a receita no IPO, que serviu para comprar balanças para o serviço de hematologia, onde Mica fora acompanhado.


Micael quer criar uma prova de ciclismo solidária, em que a inscrição reverta a 100% para o IPO

«É da minha personalidade saber receber, mas também saber dar... Eu senti o tanto que o IPO se dedica a pessoas com doença que, de algum modo, também queria poder contribuir para que adquirissem qualquer coisa, por muito pouco que tenha sido», explica. Uma ideia que para o ano vão repetir, através de um projeto ainda mais significativo: criar uma prova em que a inscrição reverta a 100% para o IPO. O objetivo é repeti-la «todos os anos».

Micael continua muito interessado no ultraciclismo. Recentemente subiu as serras da Lousã e da Estrela. «Uma maluqueira muito grande», comenta, «mas que também me dá um certo alento». O próximo grande projeto acontece em maio de 2024, uma prova de 750 km, com a maior parte do percurso em gravilha e com desníveis assinaláveis, num circuito que percorre o Alentejo, do Guadiana ao litoral. No verão, vai fazer bikepacking (viajar em bicicleta) nos Alpes. Em 2025, vai terminar o que deixou inacabado: a corrida dos Pirenéus.

 

Notícias relacionadas