No início de 2022, Micael Ferreira começou a sentir-se mal. Depois de um período muito intenso de trabalho sem interrupções, sem sequer poder fazer o luto da mãe, os projetos onde estava envolvido terminaram todos ao mesmo tempo. Parou, finalmente. E sentiu instalar-se «uma ansiedade muito grande, uma enorme debilidade psicológica», que associou a um estado depressivo ou a um luto tardio.
Procurou um psiquiatra, foi medicado, e não melhorava. Aliás, piorava. Num processo que durou cerca de mês e meio, os médicos que o foram atendendo não percebiam o que se passava. A certa altura, diagnosticaram-no com febre da carraça. «Fui indo, fui indo, fui indo. Até que comecei a emagrecer muito, a ficar amarelo, deixei de andar e fui mesmo abaixo», conta. Finalmente fez uma TAC e imediatamente se percebeu o que lhe estava a acontecer: um linfoma de Hodgkin, já com metástases. No dia seguinte dava entrada no IPO – Instituto Português de Oncologia, onde ficou internado.
Artista plástico e intérprete de dança contemporânea, nos últimos anos tem investido mais tempo no ciclismo
No dia 4 de dezembro, fez um ano que Mica, como é conhecido, terminou os 12 ciclos de quimioterapia que lhe foram prescritos. Está em remissão total. Mesmo antes de terminar o tratamento decidiu fazer uma prova de ultraciclismo (corridas de bicicleta de longa distância) pelos Pirenéus – uma duríssima travessia feita em três dias, que percorre mais de 1.000 km, com etapas noturnas e abundância de subidas de montanha. Começou a sentir-se «esquisito» ainda em Portugal. «Associei ao stress», recorda. «Lá está, mais uma vez a parte psicológica, sempre a achar que não é físico».
Com febre, às 20h estava na linha de partida para a primeira prova. «Ainda fiz 300 km», conta, mas «depois de uma subida de sete horas, uma subida sofrida, pensei: “bem, vou ter de repousar”». Absolutamente exausto, entrou no primeiro hotel que lhe apareceu: «era um hotel caríssimo, à beira da estrada. Só queria descansar». Dormiu um par de horas e, apesar de ainda se sentir doente, não lhe parecia impossível continuar. A prova tinha implicado um grande investimento físico, psicológico e monetário. Quando encarou a subida íngreme e de muitas horas que o aguardava, percebeu que não ia conseguir. No dia seguinte fez um teste à COVID-19 e o resultado positivo revelou o motivo que o travara no primeiro dia da prova.
Micael anda de bicicleta desde os três anos
Desde os três, quatro anos que anda de bicicleta e já há alguns anos praticava o ciclismo de modo mais intenso. «Comecei a investir nisso porque descobri que me dava algum prazer», explica. Em excelente forma física e praticante de alimentação vegan, o seu corpo escondeu quase todos os sinais da doença. Tinha apenas uma tosse – que na realidade era uma metástase grande no timo – a que não deu importância, tal era o foco nos projetos em que estava envolvido. «Sentia-me bem», lembra. Quando descobriu que estava doente, procurou gerir a doença de uma forma inteligente e positiva. Com uma história familiar onde as doenças sempre estiveram presentes, procurou inspiração na irmã, que aos quatro anos teve um linfoma e depois uma leucemia, já curados, e na mãe, diagnosticada com doença de Crohn (doença inflamatória do trato gastrointestinal) aos 30 anos.
«Acho que foi o exemplo da minha irmã», refere, «e também o facto de a minha mãe ter falecido (com COVID-19), ter sofrido tanto, e de eu perceber que havia ali uma série de comportamentos e de lacunas que ela cometia e que talvez não a ajudassem», diz. Uma constatação que o levou a decidir usar um processo de «pensamento inverso: “OK, isto aconteceu desta maneira com a minha mãe, vou tentar fazer o oposto”».
Outra ajuda veio do espírito positivo que cultiva, encarando os tratamentos «como um processo de cura: tinham de acontecer e ser aceites da melhor maneira para que as coisas pudessem correr bem». O pai do seu melhor amigo, ex-enfermeiro de helicópteros do INEM — Instituto Nacional de Emergência Médica, reforçou esse caminho. «Se tratares o cancro com amor, ele vai-se embora com amor», disse-lhe, numa altura em que o sentiu mais em baixo. «Levei essa frase para sempre, porque acho que é mesmo importante, não só nesta parte do cancro, mas em tudo na vida. Se tratarmos as coisas com amor, uma coisa negativa pode transformar-se noutra melhor e mais bonita».
A bicicleta foi uma terapia importante. Era algo que o motivava
A bicicleta, sempre ela, foi outra terapia importante. Inicialmente muito debilitado, Micael sentiu necessidade de arranjar algo que o motivasse. Artista plástico e intérprete de dança contemporânea, nos últimos anos tinha começado a investir mais tempo no ciclismo. «Na altura em que fiquei doente tinha comprado uma bicicleta nova» e, por isso queria «mesmo muito» voltar a pedalar. «Esperava dois ou três dias depois do tratamento e fazia uns dez, 15 km de bicicleta, suava e purgava muita coisa má do meu corpo». No dia seguinte estava de rastos, mas «os dias que se seguiam eram muito, muito bons».
No Instagram, criou a página "Cycling to Cure Cancer", com uma vertente solidária, para desmistificar a doença e ajudar quem estivesse numa situação semelhante à sua. «A ideia de superação passa muito também por uma imagem boa da vida, para além da dor» e quis «mostrar um lado bom e positivo, que também existe». À porta do IPO, com amigos, surgiu a ideia de apoiar o Instituto de alguma forma. Angariaram merchandising, divulgaram a ideia, venderam o material (maioritariamente ligado ao ciclismo) que lhes tinha sido doado e entregaram a receita no IPO, que serviu para comprar balanças para o serviço de hematologia, onde Mica fora acompanhado.
Micael quer criar uma prova de ciclismo solidária, em que a inscrição reverta a 100% para o IPO
«É da minha personalidade saber receber, mas também saber dar... Eu senti o tanto que o IPO se dedica a pessoas com doença que, de algum modo, também queria poder contribuir para que adquirissem qualquer coisa, por muito pouco que tenha sido», explica. Uma ideia que para o ano vão repetir, através de um projeto ainda mais significativo: criar uma prova em que a inscrição reverta a 100% para o IPO. O objetivo é repeti-la «todos os anos».
Micael continua muito interessado no ultraciclismo. Recentemente subiu as serras da Lousã e da Estrela. «Uma maluqueira muito grande», comenta, «mas que também me dá um certo alento». O próximo grande projeto acontece em maio de 2024, uma prova de 750 km, com a maior parte do percurso em gravilha e com desníveis assinaláveis, num circuito que percorre o Alentejo, do Guadiana ao litoral. No verão, vai fazer bikepacking (viajar em bicicleta) nos Alpes. Em 2025, vai terminar o que deixou inacabado: a corrida dos Pirenéus.