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8 março 2021
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O recreio dos reis

​​Viagem ao passado num dos arredores mais urbanizados de Lisboa.​

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Cidade do concelho de Sintra, Queluz é um somatório de freguesias entalado entre a quietude da História e o rebuliço contemporâneo do IC19, uma das estradas mais movimentadas da Europa. Em 1994, Fátima Baião Santos instalou aqui a sua farmácia, e desde então esta passou a ser também a sua casa. «Queluz é como um diamante em bruto», diz a farmacêutica, apaixonada pela terra que convida a descobrir. 


Para Fátima Baião Santos, «Queluz é um diamante em bruto», que as pessoas precisam redescobrir 

​Entre a malha urbana densamente edificada, encontram-se bolsas inesperadas de espaço aberto e verde, onde subsistem, nalguns casos teimosamente, vestígios de diferentes passados. O trilho de pegadas no lugar de Pego Longo, deixado por dinossauros há 90/95 milhões de anos, é disso exemplo. Tal como o é a Anta do Monte Abraão. Datado do Neolítico Médio/Final, o pequeno e primitivo edifício pentagonal, com cerca de cinco mil anos, foi erigido pelos homens pré-históricos que aqui viviam, para sepultar e venerar os mortos. Classificados como monumentos nacionais, ambos aguardam pelo consenso entre o interesse público e a propriedade privada.  

Junto às pedras milenares da anta, no alto da colina que se julga dever o nome ao médico judeu quinhentista Abraão, a farmacêutica Fátima Baião Santos lamenta a orfandade a que o monumento sepulcral parece ter sido votado. Não se vislumbram indicações nem há caminhos, mas a aventura para cá chegar será recompensada, não só pela solitária anta, mas por um horizonte de 360 graus sobre a cidade e muito para além dela.


A anta de Monte Abraão é um monumento com mais de cinco mil anos, onde os povos primitivos sepultavam e veneravam os seus mortos 

A antiquíssima presença humana nestas terras, comprovada igualmente por muitos outros vestígios arqueológicos de eras pré-históricas, oferece pouca estranheza. Estes foram sempre terrenos férteis, de águas abundantes, correntes e nascentes, usadas e desviadas em épocas distintas para os mais diversos intuitos.  

Em Belas, junto à Estrada Nacional 250, que liga a localidade a Caneças, encontra-se a barragem romana de Olisipo, designação dada então a Lisboa, porque a ela serviria. No pequeno vale, onde passa a ribeira de Carenque, em descida da serra da Carregueira até ao rio Jamor, restam da estrutura do século III alguns sectores: parte da zona central da muralha de retenção da água e três contrafortes em adiantado estado de ruína. A albufeira, que hoje apenas se adivinha, teria uma capacidade máxima de armazenamento de cerca de 120 mil metros cúbicos de água, transportada através de um aqueduto até à capital. 



O vale de Belas, junto à Estrada Nacional 250, foi em tempos a albufeira da barragem romana de Olisipo, onde nasceu depois o Aqueduto das Águas Livres 

Abandonada, entretanto, a sua serventia, seria aqui que em 1731 viria a nascer o Aqueduto das Águas Livres. O troço principal liga o edifício cilíndrico da Mãe d’Água Velha ao reservatório da Mãe d’Água nas Amoreiras, em Lisboa. Um trajecto de 14 quilómetros frequentemente coincidente com o do antigo aqueduto romano. Nas ruas de Queluz são visíveis extensões posteriores, que abasteciam fontes e chafarizes locais, assim como as estruturas do Palácio Nacional, igualmente guarnecido de água pelo Jamor. Este, antes de se juntar à ribeira de Carenque e continuar para Sul até ao Tejo, atravessa os jardins oitocentistas, onde em tempos fez as delícias da corte. O trecho mais afamado é um canal controlado por comportas, em cujo leito a fidalguia se passeava de gôndola e, embalada por músicos de câmara, apreciava as paisagens idealizadas, representadas em murais de azulejo. 

O canal, tal como todo o recinto, está a ser alvo de intervenções de restauro. O objectivo passa pela preservação e restituição ao espaço do fulgor de outrora, revela o director do Palácio. «Para isso é preciso que as gôndolas regressem a Queluz», defende António Nunes Pereira. O argumento é simples: este é um dos elementos mais evocativos do espírito lúdico e hedonista desta que era «uma quinta de recreio da família real». 

António Nunes Pereira quer que as gôndolas regressem ao Palácio Nacional de Queluz 

Por entre os jardins palacianos de formas geométricas, são vários os pontos de interesse, como o recém-restaurado jardim botânico. Aqui se recuperou o cultivo das plantas aromáticas com que se aprovisionava a cozinha do palácio, tal como as quatro estufas que D. Pedro III instalou e que, como no seu tempo, são dedicadas à produção de exóticos ananases. Realce também para a reformada Escola Portuguesa de Arte Equestre aqui sediada, onde é possível ver e interagir com cavalos lusitanos. 


Os cavalos lusitanos da Escola de Arte Equestre são presença habitual nos jardins do palácio 

O palácio de Queluz é um edifício feito de acrescentos, barrocos, rococós e neoclássicos, ao original Casal de Queluz, quinta de caça do marquês de Castelo Rodrigo até à sua expropriação por D. João IV e entrega à Casa do Infantado. A actual sala de refeição do restaurante Cozinha Velha será o que resta desse início, tendo sido por isso intitulada pelo historiador José Hermano Saraiva como “o ovo do palácio”. A enorme mesa de pedra, que a pandemia despojou do reconhecido bufete de sobremesas conventuais, é a mesma onde se preparava toda a comida do palácio. Rivaliza em imponência com a chaminé, completa com o espeto onde se assava animais inteiros e se punha ao fumeiro os enchidos de caça. 
 

Sala de refeição do restaurante Cozinha Velha, intitulada pelo historiador José Hermano Saraiva como “o ovo do palácio”  

A ideia das sumptuosas iguarias ali preparadas é secundada pelo esplendor das salas onde seriam servidas, como a do trono, cheia de espelhos e talha dourada. Outras são a sala da música, com um invulgar pianoforte Clementi, e a sala dos embaixadores, onde se encontram dois pares de tronos, outra raridade em toda a Europa. 
 

Pianoforte Clementi na Sala da Música do Palácio Nacional de Queluz 

​Mas, além do Palácio Nacional, há outras quintas de veraneio que podem ser visitadas em Queluz. Algumas, como a Nova da Assunção, igualmente frequentadas pela "realeza". O palacete e os jardins, situados no centro de Belas, foram construídos por João Maria da Silva Rego em 1860, e em 2019 descobertos pela cantora Madonna, "rainha da música pop". Foi este o palco do episódio em que a cantora se viu impedida de entrar montada a cavalo numa das salas, durante as filmagens do vídeo de uma das canções do álbum "Madame X". Ao furor efémero deste acontecimento resiste o espaço, merecedor de visita tranquila aos jardins, pontuados por pequenos pavilhões, lagos e coloridos conjuntos de azulejos. A não perder, num dos topos, o curioso miradouro em ferro.


Miradouro da Quinta Nova da Assunção 

Na despedida do passeio, a derradeira sugestão de Fátima Baião Santos passa por uma visita à Casa dos Fofos de Belas. Situada ali bem perto, a iguaria é a receita perfeita para apagar qualquer amargo de boca, mesmo os provocados pela realeza. 


Fofos de Belas, uma iguaria local a não perder

 

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