Tomás Anahory é uma força da natureza. Tem 34 anos, dois discos editados, muitos concertos, dois programas de autor na rádio, é sonoplasta e faz bodyboard. E ainda luta com monstros. Tomás convive, desde que nasceu, com uma malformação nas vias urinárias.
Por causa desse monstro, soma mais de dez anos de diálise, 26 operações, dois transplantes de rim e muitas «mazelas». «Aos oito meses, disseram à minha mãe que eu tinha uma bexiga que não funcionava, uns ureteres malformados. Os rins em si até estariam bons nessa altura. Começaram a ficar afectados por todo o problema urinário e deixaram mesmo de funcionar», conta, sereno, na sala de estar da casa da mãe, em Lisboa. Antes, esteve no Hospital de Santa Maria, onde é acompanhado pela equipa de José Guerra. «Há uma grande amizade com os médicos», diz ele.
Mas não se manterá sereno ao longo de toda a conversa, que os heróis também choram. E a dor de uma doença crónica é muito mais do que física. Transporta consigo o desespero, o medo do abismo. É a coragem com que se enfrenta que faz a diferença. E toda.
Aos 12 anos, várias operações depois, Tomás recebeu novo veredicto: diálise. Ainda em pediatria, disseram-lhe que teria de fazer uma fístula. «Eu não fazia ideia do que é que era. Fiz uma fístula no braço esquerdo para fazer com que o sangue bombeie mais depressa. As veias engrossam também por causa disso. E na altura diziam-me: “É meteres duas agulhas, ficas lá, vês um filme”. E eu: “impecável, com agulhas estou eu habituado a lidar, fazer, tirar sangue e essas coisas todas”».
Nada que o assustasse. A primeira vez em que entrou numa sala de diálise estava tranquilo. «Até que vi pela primeira vez as agulhas: eram uns “canhões” de todo o tamanho, da grossura de uns atacadores. Foi um bocadinho traumatizante, mas lidei bem com isso».
Fez diálise durante seis meses. E um dia o telefone tocou. Era a mãe, com uma notícia: «Estava no colégio quando a minha mãe ligou para lá a dizer para eu não comer mais nada, que ia fazer o transplante». Chorou. «Lembro-me de que desatei a chorar e depois fui dar a notícia à turma e desatei a chorar outra vez».
A sua vida estava prestes a mudar pela primeira vez. O que significou um novo rim? «Liberdade, pura e simplesmente liberdade». Não foram apenas as quatro horas, em dias alternados, que utilizava para fazer diálise, e que recuperaria. Foi muito mais: «Já não andava inchado, não andava fraco, não andava cansado».
Com a nova liberdade, passou a frequentar um liceu normal. Durante nove anos manteve essa vida. O monstro, porém, estava apenas adormecido. E acordava de vez em quando. Nem tudo estava bem.
O rim funcionava, mas a bexiga não deitava a urina fora como deveria. Tomás convive, também, com uma plastia da bexiga. «Assim ‘trocado por miúdos’, uma plastia é uma bexiga com paredes do intestino», continua. Passou novamente a ter de se algaliar de quatro em quatro horas.
A medicação começou a afectar-lhe também, ao longo dos anos, os ossos e apareceu uma osteodistrofia renal, ou seja, osteoporose causada pelos rins e pela medicação. Acabou por ter de ser operado às pernas, aos ossos que cederam ao peso do corpo.
Felizmente, diz ele, apesar de tudo, passou a adolescência com o transplante. «Recebi o rim na altura certa e felizmente, vivi a minha adolescência sem a diálise. Saía à noite, criei a minha primeira banda, a Go, dei concertos por aí fora, fiz vida de rock star, ia de férias com os meus amigos, fazia surf trips, ensaiava, andava de um lado para o outro».
Invariavelmente, no final do Verão «ia de ‘charola’ para o hospital», devido à falta de cuidado, à falta da toma de remédios, à privação de água. Bebia pouca.
Aos 22 anos, o monstro voltou a acordar, no final de mais um Verão. «Fiz uma surf trip com os meus amigos, já estava inchado. Há um Verão em que eu regresso, sou internado e começo a levar injecções». O rim deixara de funcionar.
Veio a revolta. «Toda a minha postura mudou, fiquei muito mais reservado, comecei a responder mal às pessoas, porque tive noção: “OK, a minha vida vai ser isto”».
Sabia também que, enquanto adulto, teria de esperar muito mais tempo por um novo rim. Esperou. Foram dez anos de diálise. Houve muitas consequências, muitos distúrbios no corpo. Teve de tirar as paratiróides, responsáveis por manter os níveis de cálcio adequados. Tinha níveis elevados de paratormona, que lhe afectavam os dedos. «Estava com depósitos de cálcio muito grandes nas articulações, começava a não conseguir sequer mexer os braços».
Em dez anos de diálise, acabou os estudos, começou a trabalhar e a viver sozinho. Começou a fazer diálise nocturna.
Saía do trabalho às 23h, chegava às 23h50 à clínica, no Lumiar, dormia até às seis e meia da manhã. «Era eu que me picava, que ligava a máquina e ia para Algés, para casa. Às vezes, ia dormir, outras vezes pegava na prancha e ia para a Costa da Caparica ou para Carcavelos».
Foi quando lançou oficialmente o primeiro disco que apareceu um novo rim. «Há uma música no disco, a “Little Bean”, a pedir um rim, e mais cedo eu lançasse o disco, mais cedo me apareceria o rim», ri.
Foi em 2012. Hoje é um doente exemplar. Há dois anos e meio que vive com a namorada e dois enteados. O monstro, porém, tornou-se mais ousado. Apareceram-lhe isquemias no pé direito, impedindo que o sangue chegue ao pé. As isquemias ocorrem nos microvasos e, por isso, são inoperáveis. «Falaram-me em amputação e caiu me tudo». A câmara hiperbárica fez com que as necroses cicatrizassem. «Mas o problema está lá».
Tomás ainda vive com medo do monstro. Emociona-se. Pede desculpa. A forma como o encara faz toda a diferença. «A minha vida é muito bem vivida, sempre foi». Tentará vencer o medo com o sorriso na cara que aprendeu a ver no rosto da mãe. Porque, antes de tudo, Tomás é uma força da natureza. E não vai desistir de enfrentar mais um monstro.