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2 novembro 2018
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O nadador sem tabus

​​​​​​​Desporto ajudou Daniel a aceitar a paralisia cerebral.

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A natação adaptada teve um papel duplamente libertador na vida de Daniel Videira. Tornou-lhe o corpo mais forte e pacificou-lhe o coração, ajudando-o a olhar de frente para a deficiência. E a aceitá-la.
 
O atraso no início da locomoção alertou para a existência de um problema. O diagnóstico chegou quando Daniel tinha dois anos: paralisia cerebral. A perturbação do movimento, ligeira, afectava sobretudo o lado direito do corpo. Com o apoio da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa começou a fazer fisioterapia e hidroginástica. Aos quatro anos iniciou-se na natação e durante a infância também praticou equitação.
 

 
Aos sete foi operado, com o intuito de esticar o tendão de Aquiles, para aumentar a mobilidade. «Tudo isso ajudou-me a desenvolver as competências motoras e a ter menos dificuldades no futuro», explica o jovem farmacêutico de 26 anos.
 
Fez todo o percurso escolar com sucesso e licenciou-se em Ciências Farmacêuticas. Sempre frequentou as aulas de educação física, gostava de praticar voleibol e basquetebol, e jogar à bola com os amigos. As maiores dificuldades surgiam nas actividades que requeriam motricidade fina, como trabalhos manuais ou usar uma régua. Nada que impedisse uma «vida normal», que Daniel escolheu viver. Sem dar conta, virou as costas à deficiência e a paralisia cerebral tornou-se um tabu. «Só falava sobre as minhas dificuldades motoras se me perguntassem directamente. Não me sentia à vontade, talvez por receio de que olhassem para mim de maneira diferente».
 
Hoje reconhece que foi por preconceito que se tornou atleta apenas aos 18 anos.
 

 
«Ligar-me à natação adaptada associava-me a uma pessoa portadora de deficiência». Não se deixou seduzir pela grande tradição da GesLoures na natação adaptada, onde pratica desde os seis anos. Resistiu ao exemplo dos dois irmãos gémeos, mais velhos, ambos atletas de natação. Ao orgulho nos resultados alcançados pelo colega David Grachat, o nadador paraolímpico português mais medalhado em actividade e seu grande ídolo. O momento de viragem aconteceu inesperadamente. «Cheguei à piscina [de Santo António dos Cavaleiros] para nadar e ao lado decorria um treino da natação adaptada. O meu treinador, Carlos Mota, e o David Grachat viram-me nadar e no final o treinador fez-me a proposta. Aceitei o desafio. Era uma altura diferente, eu tinha mais maturidade».
 
A competição trouxe-lhe o contacto com atletas portadores de deficiências completamente diferentes. Ver a forma como aceitavam e superavam limitações reconciliou-o com a própria deficiência. «Passei a aceitar melhor, deixei de fugir do tema e hoje falo abertamente, sem problemas». Acredita que outras pessoas passam pelo mesmo, o que explica haver tão pouca gente com deficiência a competir. «Mas é o contrário», diz. «O ambiente da competição é muito bom e sentimo-nos mais integrados e motivados. Ajuda-nos a crescer e torna-nos pessoas melhores».
 
Com a competição ganhou também disciplina e resiliência. Durante o curso universitário ia aos jantares de turma, mas para ele não havia noitadas. É normal acordar às 6h30 para treinar. Também aprendeu a não deixar que os nervos o limitem. «Acho que tenho muita inteligência emocional. Posso estar estoirado fisicamente mas a nível psicológico dificilmente cedo, mesmo nos treinos mais duros. Estou sempre a pensar em melhorar».
 
Daniel gosta de treinar e treina muito, cerca de 20 horas por semana. Nove treinos de água, de manhã e à tarde, incluindo ao sábado, mais três a cinco treinos fora de água com passadeira, circuito de máquinas, às vezes cross training. Para conciliar tudo, conta com o apoio da equipa da farmácia onde trabalha, sempre pronta a trocar os horários para que possa treinar e competir.
 

 Os treinos no ginásio fazem parte da preparação diária

Foi em Copenhaga que se estreou nas provas internacionais. A cidade fazia parte do circuito do campeonato mundial de 2017. Mas só este ano as competições internacionais se tornaram um verdadeiro desafio. A causa foi a alteração nos critérios de classificação da deficiência motora, que fez com que passasse para uma classe abaixo (de S7 para S6, numa escala de um a dez, em que S1 corresponde a limitações mais profundas). «Enquanto antes lutava para chegar a uma final, passei a lutar por medalhas. As minhas expectativas passaram a ser ir ao Europeu de Dublin lutar por uma medalha na minha prova principal, os 400 metros». Conseguiu mais do que isso. Além da medalha de prata nos 400 metros, a sua «melhor prova de sempre», também trouxe para casa a medalha de bronze nos 100 metros, numa prova «disputadíssima» em que chegou ao pódio com uma vantagem de duas décimas de segundo.
 
Daniel Videira descreve com emoção as provas, o momento em que uma viragem mais rápida lhe permitiu ultrapassar o adversário ou uma braçada mais lenta o atrasou. «Por mais preparados que estejamos, há sempre aspectos técnicos que falham», desabafa. Nunca perde a oportunidade de analisar os vídeos das provas dos adversários, para «perceber o que pode esperar deles». Com um sorriso franco, reconhece que é «ambicioso e racional», mas sabe que o que mais o motiva não é vencer. «Gosto de superar desafios e fazer o meu melhor. O resto não depende tanto de nós».​ 

Daniel nada desde os quatro anos. Aos 18 tornou-se atleta

Os resultados alcançados em Dublin elevaram a fasquia e Daniel elevou o sonho aos píncaros: chegar aos Jogos Paraolímpicos de Tóquio, em 2020, «o grande objectivo de qualquer desportista». Até lá, conta participar no campeonato do mundo na Malásia, em 2019, e no Europeu, em Budapeste, em 2020. O atleta transpira entusiasmo ao falar dos treinos «duríssimos» que tem pela frente e os olhos brilham quando antevê o estágio em altitude que o espera na Serra Nevada, em Espanha, assim como os treinos em duas cidades europeias, talvez na Holanda e em Itália.
 
Os planos para os próximos dois anos estão traçados. Depois o futuro dirá. É até possível que abandone a carreira na natação para se dedicar a outras ambições profissionais. «Gosto muito de aprender e quero continuar a evoluir. Gostaria de desenvolver a parte clínica, um lado menos explorado na Farmácia e o que me dá mais prazer».

 

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