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13 janeiro 2020
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Luís Silva Campos Fotografia de Luís Silva Campos

O jardineiro do hospital

​​Aos 35 anos recebeu o diagnóstico de doença bipolar, depois de um episódio psicótico.​​​​​​

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Pouco passa das dez da manhã quando chega a carrinha de caixa aberta carregada com os resíduos recolhidos nos 22 hectares do Parque de Saúde de Lisboa, onde está instalado o Hospital Júlio de Matos, e do antigo Convento de Rilhafoles, onde funcionou o Hospital Miguel Bombarda até 2011. Reunidos, os dois hospitais formam hoje o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Três homens descem da carrinha e começam rapidamente a separação. Papelão para um lado, plástico para outro, resíduos orgânicos para outro. Usam roupas e calçado de trabalho. Em comum, as sweatshirts bege, onde sobressai o logotipo verde da Tílias-coop, empresa de manutenção de espaços verdes que se dedica à inserção dos doentes mentais na sociedade.

José Carlos Carrilho conduz os trabalhos com naturalidade. É o motorista, jardineiro e encarregado da cooperativa criada há 20 anos a pensar na reabilitação de pessoas com problemas psiquiátricos. A formação que recebem na área da jardinagem e horticultura facilita a futura inserção no mercado de trabalho. 

José Carlos conheceu o projecto em 2006, quando esteve internado na sequência de um episódio psicótico. Um problema familiar espoletou a crise e o diagnóstico chegou aos 35 anos: doença bipolar. Dez anos antes tinha enfrentado uma depressão, na sequência do divórcio.  Entre os dois momentos fez a vida normal, com altos e baixos, como toda a gente. Desde então, a Tílias-coop tornou-se a sua vida. 

Os dias começam cedo no pavilhão 38, onde está sediada a cooperativa. Nunca falta o que fazer. No Outono é preciso manter os arruamentos limpos das folhas do enorme espaço verde que rodeia o hospital. É preciso tratar da horta e da estufa que abastecem clientes internos ao hospital. Faz também a manutenção das áreas verdes de alguns clientes externos, como a freguesia do Lumiar. De todos os trabalhos que lhe cabem, José Carlos prefere o de motorista.



Mal termina a separação dos resíduos, é hora da pausa. José Carlos e Nuno Alvarez, o coordenador da Tílias-coop, caminham por entre os edifícios cor-de-rosa, na direcção dos portões que dão para a Avenida do Brasil. A manhã está solarenga, mas fria. Os raios de sol chegam filtrados por entre as árvores, o vento faz ondular as folhas.  Respira-se tranquilidade. Não fossem os aviões que sobrevoam continuamente os céus e seria fácil esquecer estarmos no centro de Lisboa. José Carlos e Nuno atravessam a estrada e dirigem-se ao café Cantinho de Roma. É lá que todos os dias bebem café. Ainda não são 11 horas, mas o corpo robusto de José Carlos pede uma bifana. 


Depois da recolha de resíduos no recinto do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, é hora da pausa para o café, na companhia de Nuno Alvarez, coordenador da Tílias-coop

José Carlos já foi pedreiro, ladrilhador, estucador, carpinteiro de limpos, carpinteiro de cofragem. Pasteleiro foi a sua primeira profissão, seguindo os passos do pai, e a preferida. Nunca imaginou ser jardineiro, mas quando a equipa de reabilitação do hospital lançou o desafio não hesitou. Na altura estava internado, não trabalhava, apenas frequentava a terapia ocupacional. 

No hospital, passou por várias fases. O internamento, na fase aguda da doença, o ajustamento da medicação, que lhe permitiu recuperar autonomia, a passagem por duas unidades habitacionais, uma dentro do hospital e outra fora, onde ensaiou a recuperação de um quotidiano independente, a integração profissional na Tílias-coop. Quando teve alta hospitalar, voltou para casa, mas manteve o trabalho. Mais tarde, ficou efectivo. «O engenheiro Nuno estava muito contente com o meu trabalho. Todos gostavam de mim», conta com orgulho. Passaram 13 anos.

José Carlos mantém as consultas regulares de psiquiatria e não falha a medicação: uma injecção mensal e comprimidos diários. A medicação tranquiliza-lhe o espírito e ajuda-o a dormir. Por uma vez abandonou os medicamentos e teve uma recaída. Nunca mais arriscou. «Quando não tomava a medicação, não dormia. Ficava espertinado a noite toda», explica. Tirando alguns tremores nas mãos, consequência da medicação, sente que a doença está controlada. 

Não gosta de variações, prefere levar a vida em rotinas. É feitio, mas também reflexo da doença. O despertar às seis da manhã, o percurso de carro até ao CHPL, uma torta e um café ao pequeno-almoço, o momento de espera até pegar ao trabalho, às oito horas. Até às 17 horas, duas pausas, a matinal no Cantinho de Roma e o almoço na pequena sala de refeições da Tílias-coop. «As rotinas dão-lhe segurança», acredita Nuno Alvarez. No regresso a casa espera-o o jantar feito pela irmã Rosa, que lhe trata das refeições. São três irmãos, cada qual vive num apartamento da casa familiar no Casal Novo, em Caneças.



José Carlos dá-se bem com as irmãs e os cinco sobrinhos. Não vê a filha de 27 anos há um ano. A separação da mulher, tinha a criança apenas dois anos, afrouxou os laços. 

Pouco cabe fora da rotina diária. Nas últimas férias ficou em casa. Gosta de ver televisão. Há uns anos frequentava o Salão do Reino das Testemunhas de Jeová, ia à praia com os colegas, jogava futebol. Hoje é raro. «Está cada vez mais caseiro. O que ele gosta é de trabalho-casa, casa-trabalho e ponto final», diz o responsável da Tílias-coop. Mas José Carlos ainda tem sonhos. Olha os aviões por cima da cabeça e sabe que um dia gostaria de entrar num.  Ir até França visitar os tios que lá moram. 

Sem a medicação é provável que José Carlos não tivesse conseguido equilibrar a vida. A experiência de Nuno Alvarez com os mais de 200 formandos que passaram pela Tílias- -coop diz-lhe isso mesmo. Aqueles que abandonaram os tratamentos por auto- -recriação tiveram sempre recaídas. «A medicação é uma “bengala” para os portadores de problemas psiquiátricos», defende. 

 


A integração na Tílias-coop também contribuiu para reabilitar José Carlos. Trouxe estabilidade financeira, rotina, relações sociais. Uma vida. O trabalho fá-lo sentir-se útil e liderar um grupo dá-lhe auto-estima. Ele dá-se bem com toda a gente, «é brincalhão e bem-disposto». Cumpridor e pontual, nunca faltou a um dia de trabalho. É pelo exemplo que leva os colegas a fazerem o que é preciso. «Alguns são um bocadinho calões, mas uma pessoa tem de os levar a bem. Malandrice eles sabem-na toda», ri-se.

Ao longo dos anos, o convívio diário, os dias bons e maus estreitaram os laços entre os dois homens. São amigos. José Carlos recorre a Nuno quando tem algum problema e está sempre disponível para retribuir. «Posso contar com o Senhor Nuno para tudo. Por isso é que eu gosto de estar cá. Pelo trabalho e por tudo», resume. Nuno sente confiança total em José Carlos. Aprecia o seu olhar tranquilo. «Eu sou um espírito irrequieto e ele transmite-me um pouco de paz».


A DOENÇA DOS HUMORES

Todos temos oscilações de humor. Dias tristes e alegres, dias de maior passividade e outros mais activos. «Há pessoas em que isto é exagerado. As pessoas bipolares alternam entre períodos em que estão muito deprimidas e outros em que estão muito expansivas», explica o psiquiatra António Coimbra de Matos. A bipolaridade tem causas hereditárias, mas é influenciada por outros factores, como ambientes opressivos.

O espectro da bipolaridade é muito largo e o tratamento deve ser decidido caso a caso. Por vezes basta consultar um psicólogo ou psicoterapeuta, noutras pode ser necessário medicação e «um ou outro internamento». Coimbra de Matos defende que, actualmente, é possível controlar a doença com relativa facilidade. Quem identifique os sintomas deve começar por consultar um clínico geral. «Nem sempre é preciso​​ medicação. Convém mesmo não abusar da quantidade de medicamentos».

António Coimbra de Matos​
Psiquiatra​

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