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7 abril 2018
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O homem que voltou do inferno

​​​​​​​A droga era o centro do mundo de Rui. Há 22 anos, preferiu viver.

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«Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses», prometeu o filósofo grego Sócrates há milhares de anos. Rui Cardoso precisou de perder-se por labirintos tortuosos para aprender que conhecer-se significa, antes de mais, saber e aceitar os seus limites. Dia após dia, todos os dias da sua vida. Ele sabe bem o que é ultrapassá-los, ignorá-los até atingir o lado mais negro da existência. Passou toda a adolescência e o início da idade adulta a fazê-lo: «Com 14 anos, ainda nem tinha a personalidade definida, as drogas entraram na minha vida e passaram a ser a única coisa que existia», confessa. Hoje, aos 46, tem sorte em estar vivo e com saúde, reconhece. E o caminho continua.

Criado no bairro de Alvalade, em Lisboa, no pós-25 de Abril, filho de pais jovens e com os avós por perto, não havia na sua vida nenhum indicador que prenunciasse um caminho pelo “paralelo” mundo da droga. «Cresci numa família normal, jantávamos todos à mesa…brincava na rua. Tinha muita liberdade». E, no entanto, era ainda quase uma criança quando começou a sentir necessidade de escapar à realidade. «Aos 12, 13 anos, já tinha a mania de beber uns copos às escondidas, tomar comprimidos.

Sempre tive muita apetência para coisas que me pusessem fora de mim».

A escalada, do haxixe à heroína, foi rápida – o tempo de se tornar homem. Aconteceu, apesar das tentativas dos pais para impedi-lo. Mesmo sem saber bem por que mundos deambulava o filho, os progenitores perceberam que algo estava errado e decidiram afastá-lo de Lisboa, aos 14 anos. «Uma das soluções foi colocarem-me num colégio interno. E isso, de alguma maneira, atrasou o meu início nas drogas pesadas». Mas não impediu. Aos 18 anos, estava «agarrado».

Cresceu a submergir, mais e mais, no mundo da droga. «Na primeira vez que usei heroína, disse: “Estou lixado”, vou calçar estes sapatos. Aquilo tem um lado muito apelativo. Muito, muito viciante. Todos os problemas desaparecem…».

Aproveitava todas as oportunidades para alimentar a dependência. «Nos anos 90 havia muita droga no país, era fácil». Os fins-de-semana em Lisboa eram passados a consumir com os amigos. «E durante a semana também. E aquilo que era de alguma maneira recreativo passou a ser um vício».

Tinha 20 anos quando regressou à casa materna. À mesma Lisboa, ao mesmo bairro, às ruas da sua infância. A “castanha”, como ficou conhecida a heroína, engolira já toda a juventude aos seus amigos de sempre. Havia os que tinham estado presos, que não tinham emprego, os que não estudavam. Levavam «vida de rua, de agarrado». Ele acabou por seguir-lhes os passos.



«Passou a ser uma maneira de estar, o interesse da minha vida era encher a cabeça e usar drogas. Tudo girava à volta daquilo». Chegou a recusar receber um prémio de artes gráficas, o curso que tirara, «porque o pessoal foi todo usar drogas para outro lado». Entretanto, para alimentar o vício, enganava, roubava. Fez de tudo, correu riscos tremendos, sofreu overdoses.

O problema não se resumia às substâncias que injectava e fumava. O álcool acompanhou sempre os consumos, com consequências desastrosas. «Fiz grandes asneiras com os copos. Tive comas alcoólicos, perdi os limites. Parava quando caía para o lado».

As consequências eram pormenores secundários trazidos pelo seu único propósito: alimentar um vazio voraz, impossível de satisfazer por completo. Até que chegou a idade adulta e, com ela, os primeiros desejos concretos de pertença. Mas os esforços de Rui para se integrar na sociedade não surtiam resultados. Era incapaz de manter um emprego. Assim que o conseguia, o salário durava-lhe três ou quatro dias.

«Depois ainda faltavam mais 20 dias e tinha de continuar a arranjar dinheiro. Tinha de existir, de comer». Quando o dinheiro faltava, ele faltava ao emprego.

Chegou ao fundo do poço: «Já não havia nada, o caminho daquilo era a morte». Desses tempos, a viver num quarto em casa dos avós, o ex-toxicodependente recorda como a solidão se lhe colou ao coração. Era o pior, diz. «Tinha muita gente, mas era tudo para usar drogas. Não havia ligações emocionais com ninguém. Quando uma pessoa se apercebe, está completamente embrulhada num mundo negro paralelo, muito triste».

Às vezes, é preciso um pequeno empurrão e uma vontade tremenda para entrar no caminho certo. E foi assim com Rui, que acabou por vencer o vício. Aos 26 anos, consciente de que não queria ter aquele tipo de vida, encontrou um grupo de pessoas que tinham passado pelo mesmo caminho, os Narcóticos Anónimos. «Eram pessoas que tinham tido um problema com drogas e estavam a conseguir viver sem as usar». No primeiro jantar a que foi, «magro como um cão», surpreendeu-o o facto de ver todos à sua volta a rir, bem-dispostos, sem consumir drogas ou álcool. E pensou: «Eu gostava de estar assim». Desde então, passou a frequentar as reuniões. Resultou.

Ainda foi para um centro de recuperação, durante alguns meses, para afastar-se e reaprender hábitos como «acordar, fazer a higiene, a cama». Quando voltou, conseguiu o primeiro emprego, a que se dedicou. Durante o tempo passado no extinto jornal A Capital, frequentou ambientes boémios e conseguiu manter-se abstémico. Achou «piada». Foi nessa altura que conheceu a mulher que seria a mãe dos seus filhos e companheira de vida.


Andar de stake na rua com as Labrador é um dos prazeres que conquistou​

Passaram 22 anos desde a última vez em que Rui consumiu qualquer substância psicotrópica ou álcool. Hoje, é casado, pai de três filhos, dono de uma empresa ligada ao turismo, «um membro responsável da sociedade». Adora andar de skate, passar tempo com as suas duas cadelas Labrador, fazer surf. «Gosto de cinema, de ler, viajo bastante. Tenho muito cuidado com os meus limites, porque rapidamente vivo fantasias. E adoro estar com as cadelas. Às vezes só olhar para elas já me ajuda a descansar».

Venceu uma doença causada pelo consumo de substâncias, a hepatite C, contra a qual lutou, com o incondicional apoio da família, durante um ano. Os médicos declararam o vírus morto.

Mais recentemente, Rui conseguiu ultrapassar «uma fase muito difícil» na vida da sua família sem recorrer a qualquer substância. «Tenho de lidar com as coisas a seco, sei que não vou conseguir parar. Ser abstémico é a melhor solução para mim».

Rui sabe-se afortunado. Foi difícil mas aprendeu a conhecer-se melhor, a respeitar os seus limites. E, quem sabe, talvez seja ao universo que deve agradecer por ter sobrevivido aos abismos em que se perdeu. «Muitas vezes estive perto da morte. Tive muita sorte, fiquei para poder contar a história».  Ficou também para viver e par​a sonhar. «Quando for mais velho, quero liberdade, aquela coisa meio hippie de ter uma autocaravana e ir atrás do Sol». 

 

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