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10 maio 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de André Oleirinha Vídeo de André Oleirinha

O homem que aprendeu a ver

​​​​Com o acidente que lhe tirou a visão, Jorge Pina descobriu como valorizar o que importa na vida.​

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​Quando a nova sede da Associação Jorge Pina abrir as portas, o pugilista e praticante de atletismo verá concretizado o maior sonho: um espaço próprio onde, através do desporto, vai ajudar crianças e jovens a encontrarem um sentido para as suas vidas. O espaço, enorme, é do tamanho dos sonhos do homem que já tocou o céu e o inferno, e que, através de um persistente percurso de autoconhecimento, alcançou a serenidade.  


Jorge Pina treina com a filha Bruna nas novas instalações da Associação Jorge Pina, ainda em obras

Jorge Pina, cabo-verdiano concebido em Angola e nascido no Algarve, cresceu num bairro de barracas, hoje transformado em bairro social, numa família de oito irmãos. Viu a mãe desdobrar-se a trabalhar para pôr comida na mesa, na adolescência conviveu com a delinquência, o álcool e as drogas, abandonou cedo a escola para trabalhar e ajudar a família, dormiu em carros depois de ter sido expulso de casa. Cresceu «muito rápido». Aos 18 anos foi pai, fez de tudo um pouco na vida. Foi repositor de supermercado, estafeta, taxista, segurança, trabalhou num café, fez a tropa como pára-quedista, foi campeão de boxe, participou como atleta paraolímpico nos Jogos Olímpicos de Pequim, Londres e Rio de Janeiro, e prepara-se para estar presente em Tóquio.  

Entre os muitos desafios que enfrentou, o maior foi de natureza espiritual: tomar a vida nas próprias mãos e combater os sentimentos negativos que prejudicavam a pessoa que queria ser. «Por vezes culpamos tudo e todos pela nossa condição de vida. Eu comecei desde cedo a perceber que tenho de ser eu a trilhar o caminho, e a escolher o que quero ser e fazer no futuro», explica. Neste percurso, houve alguns momentos-chave. Com o boxe aprendeu «a vontade de vencer». O gosto por colocar-se à prova, o combate entre o medo e a vontade de vencê-lo, a exigência e persistência a que tinha de obrigar-se. A sensação de superação. «Gosto de coisas difíceis, mostrar que estão errados quando me dizem que não consigo».  


A Associação Jorge Pina ajuda, através do desporto, crianças e jovens a encontrarem um sentido para as suas vidas​

Foi ainda no bairro de Santos, no Rego (Lisboa), onde vivia com a família, que Jorge Pina conheceu o treinador Joaquim Silveira, mais conhecido por Moca, que procurava nos bairros jovens que quisessem experienciar o boxe. Aos 11 anos apaixonou-se pela modalidade. «O meu sonho era ter sido campeão do mundo, como o Muhammad Ali, e fui atrás desse sonho», conta. Passou por vários clubes e cresceu no Sporting. Com «disciplina e treino», tornou-se campeão nacional nas categorias de 67, 71 e 75 kg. Participou em competições internacionais e estava a preparar-se para disputar o título de campeão do mundo quando um acidente deitou por terra a carreira e o sonho do boxe.  

Em 2005, num treino em Espanha, sofreu um descolamento de retina no olho esquerdo, que não foi imediatamente diagnosticado. Três operações não impediram que ficasse totalmente cego. Por indicação médica, submeteu-se a quatro novas operações, desta vez ao olho direito, em que foi perdendo progressivamente a visão, e acabou reduzida a dez por cento. Nunca percebeu a necessidade de operar o olho direito, mas escolheu não procurar respostas, não se revoltar «com os médicos nem com Deus». «Não ia voltar a ver de certeza, não me adiantava procurar o quê e o porquê. Tive de ter a capacidade de aceitar o que me tinha acontecido», diz, com uma simplicidade desarmante.  

A perda da visão lembrou-o do dia em que soube que um antigo adversário, então campeão de boxe de Espanha, tinha deixado de combater porque corria o risco de ficar cego. «Bem feito!», disse, movido pelo rancor que ainda lhe tinha, devido a uma derrota que, à época, achou injusta. «Afinal, a pessoa que ficou cega e deixou de poder fazer aquilo que mais gostava fui eu. Aprendi logo aí que nunca mais ia desejar mal a ninguém». Da experiência recolheu outro ensinamento: «Todos precisamos uns dos outros para evoluir, mesmo dos adversários. Servem-nos como uma lamparina, uma luz, para chegarmos mais longe».  


Jorge Pina treina todos os dias para correr a maratona em Tóquio. Acorda às cinco da manha, medita e corre

Quando foi obrigado a desistir do pugilismo, Jorge Pina transferiu para o atletismo a paixão que antes consagrara ao boxe. Tornou-se atleta de alta competição. Com o apoio de José Santos, treinador de atletas paraolímpicos, preparou-se para o campeonato do mundo em São Paulo (Brasil). Quis depois desafiar-se a correr a maratona nos Paraolímpicos de Pequim, em 2008. O treinador indicou-lhe 3h20 como tempo mínimo para ser apurado, mas na prova de qualificação alcançou 2h54. Seguiram-se Londres, em 2012, e o Rio de Janeiro, em 2016. A meta agora é Tóquio, assim permita a pandemia. Prepara-se todos os dias, com a força de carácter que o distingue. Acorda às cinco da manhã, medita, às sete vai correr com o guia. Agora, com a pandemia, treina em casa, numa passadeira. Ocupa o resto do dia com os projectos da Associação Jorge Pina, que criou em 2011, e os treinos de boxe que continua a dar, apesar das limitações visuais. É embaixador do Plano Nacional de Ética no Desporto, retomou os estudos e está a terminar o 12.º ano. Quer licenciar-se em psicologia. Acalenta o sonho de correr de Fátima até ao Vaticano em 50 dias. «Gosto de estar sempre ocupado, a fazer, pensar, planear, a “arranjar problemas” para mim e para os outros», ri-se.  


O caminho da fé e da espiritualidade ajuda-o a trabalhar a pessoa que ambiciona ser

Quando olha para trás, Jorge Pina reconhece que durante muitos anos foi «cego» e andou perdido «nas toxinas do mundo», até que, progressivamente, escolheu o caminho da fé e da espiritualidade. Usa diariamente a oração e a meditação para trabalhar o amor, a compaixão e a esperança dentro de si. «Descobri que sou uma pessoa muito rica e que todos têm essa riqueza dentro de si, têm é de trabalhá-la», acredita. A sua ambição é contagiar as pessoas à sua volta com a sua história e exemplo, inspirá-las a tomarem as vidas nas próprias mãos. Dizer-lhes: «Nasceste num bairro, mas não é o bairro que te faz, tu é que fazes o bairro. Podes ser aquilo que queres, se quiseres realmente. Quando colocamos amor e paixão na nossa vida, fazemos magia!».

 

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