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24 fevereiro 2020
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«O Estado está a pôr pessoas fora do sistema»

​​​​​​​​​​Presidente da ANF defende liberdade de escolha para os doentes resolverem os seus problemas.

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REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA (RFP): Tem no gabinete uma frase de Gandhi: «Felicidade é quando o que pensamos, o que dizemos e o que fazemos estão em harmonia». É possível cumprir esta máxima quando se é presidente de uma organização como a ANF? 
​PAULO CLETO DUARTE​: Não só é possível, como obrigatório. Quando assumimos responsabilidades colectivas é fundamental lembrarmo-nos sempre da nossa missão. A nossa missão é fazer com que as pessoas vivam mais e vivam melhor. Ao mesmo tempo, é acreditar que as farmácias podem ser a rede mais valorizada pelas pessoas. Só poderemos atingir o objectivo se formos coerentes nestes três aspectos: a pensar, a dizer e a executar.

Consegue-se manter a coerência quando é preciso explicar ao poder político o ponto de vista das farmácias? 
Não só se consegue, como se deve. Um dos maiores atributos que o sector das farmácias sempre teve – e não apenas na nossa Direcção – é contar uma história coerente. A nossa visão foi sempre coerente com uma determinada ambição para o país, para a Saúde em Portugal, para as farmácias e para a nossa associação. Nós dizemos sempre a mesma história, dentro e fora de portas.


«É indiscutível que os farmacêuticos comunitários estão subaproveitados. As pessoas precisam mais deles», considera o presidente da ANF

Há uns anos, os farmacêuticos eram vistos como uma classe privilegiada. Nos corredores do Parlamento, do Ministério da Saúde e do Infarmed essa visão já é diferente? 
Não tenho dúvidas de que é diferente. Claro que ainda há laivos em algumas mentes que congelaram no tempo, mas vários factos são hoje quase indiscutíveis: as farmácias sofreram mais do que deveriam; os farmacêuticos estão subaproveitados; e a rede de farmácias é o último resquício de coesão territorial, equidade e universalidade no acesso à Saúde.

Acredita que hoje é mais difícil a uma ministra da Saúde pegar na caneta e fazer mais um despacho a cortar preços e margens? 
Acho que não é difícil, mas tem consequências para as pessoas. O recente episódio que tivemos com o Ben-U-Ron [paracetamol], que é o medicamento mais dispensado no nosso país, demonstra que é preciso muito cuidado com decisões dessas. Há um nível de preços em Portugal que, em alguns casos, não é sustentável. Não vale a pena termos produtos baratos, mas que não existem.

As alternativas ao Ben-U-Ron que o Infarmed comunicou publicamente existirem no mercado dependem todas de receita médica. Para satisfazer a necessidade dos pais à procura de Ben-U-Ron pediátrico, o farmacêutico tem de violar a regra da receita médica obrigatória… 
O sistema tem de proteger a pessoa. Isto significa que o utente tem de ter acesso ao medicamento alternativo exactamente nas mesmas condições, até de comparticipação, e não ser penalizado por essa mudança. E isso precisa de uma relação profissional entre o farmacêutico e o médico. De poder de decisão diferente, porque as circunstâncias são diferentes.

O bastonário da Ordem dos Médicos já identificou a necessidade de se criar uma ferramenta de comunicação entre a farmácia e o médico de família, entre a farmácia e o médico que está no hospital. Acredita que isto vai ser possível, ou é daqueles sonhos que nunca mais andam para a frente em Portugal? 
Neste momento já acontece. Temos dois bons exemplos: o processo de vacinação contra a gripe é uma forma de ligar o sistema hospitalar com o sistema das farmácias. Segundo, a experiência de dispensa de medicamentos aos doentes do Hospital de São João. Eu acredito nisso, mas é muito mais uma corrida de fundo do que uma corrida de velocidade. 

E os pais à procura do Ben-U-Ron? 
Se for uma situação aguda, como é o caso do paracetamol, então temos de poder actuar na hora. Nós somos todos profissionais de saúde. Cada um tem de assumir as suas responsabilidades. Se há coisa que nós afinámos na nossa agenda é a importância de sermos mesmo farmacêuticos. Sermos mesmo farmacêuticos implica assumirmos integralmente a nossa responsabilidade. Corrermos o risco dessa decisão. O sistema precisa muito mais do farmacêutico do que o que acontece hoje em dia ou foi possível no passado. Todas estas situações de falhas exigem outra intervenção do farmacêutico. A nossa principal missão é defender os doentes. Para defender os doentes, somos obrigados a garantir a continuidade da terapêutica, independentemente do medicamento de que a pessoa necessita. A nossa função não é dispensar um medicamento, é resolver um problema de saúde.

Se a farmácia conhece um doente crónico, com historial de tratamento de determinado medicamento, com um processo clínico, pode dispensar sem receita médica? 
Não só pode, como deve. Tem é de saber o que é que está a fazer. E isso é uma mensagem fundamental. Nós temos de separar o trigo do joio. Há boas práticas, que salvam vidas todos os dias, de dispensa de alguns medicamentos sem receita médica, na lógica da intervenção farmacêutica, daquilo que é a melhor visão clínica. Essas não só têm de ser perpetuadas como incentivadas. Devem é ser sempre registadas, para que não haja dúvidas de que foi uma boa prática. E há péssimas práticas, que nos aproximam de outras coisas que nós não queremos ser.

É o que acontece quando uma farmácia dispensa medicamentos com certo perfil de risco, sem receita, sem perguntas, às vezes sem conhecer os doentes. 
Isso é demolidor! Há duas coisas que são demolidoras: essas situações de más práticas e as fraudes, dois temas contra os quais continuaremos a ser implacáveis. Nós estaremos sempre do lado das autoridades judiciárias, do Ministério da Saúde, do Infarmed e da Ordem dos Farmacêuticos a combater as fraudes e as más práticas profissionais. É nosso dever proteger os direitos dos doentes e suportar a maioria das farmácias, que trabalham bem.

A ANF lançou a petição "Salvar as Farmácias, Cumprir o SNS". Qual foi a ideia? 
Há o consenso nacional de que as farmácias podem e devem dar mais ao sistema de saúde.  E de que, como rede, têm de ser protegidas. Foi importante mostrar à Assembleia da República, ao Governo, a toda a gente, que essa não é só a visão das farmácias, é a visão dos portugueses. Por ser assim, conseguimos realizar a maior petição da anterior sessão legislativa. 

Passou as 120 mil assinaturas.
E foi totalmente mobilizadora do sector da Saúde: ordens profissionais, agentes da cadeia de valor do medicamento, confederações patronais, sindicatos, estudantes de Farmácia. Tenho a certeza de que a Assembleia da República vai criar condições políticas para que se resolva um conjunto de problemas que se arrastam há demasiado tempo. Se isso não acontecer, muitas farmácias que hoje prestam serviço às populações mais isoladas não vão conseguir sobreviver. Quem vai pagar a principal factura são os portugueses.  E ninguém quer que aconteça à rede de farmácias o que está a acontecer à rede de hospitais do SNS e à rede de cuidados de saúde primários, em que nos sentimos a viajar no tempo, mas em sentido contrário: a cada dia que passa retrocedemos. Hoje estamos pior do que ontem e amanhã vamos estar pior do que hoje.

No século XXI, fecharam 750 extensões dos centros de saúde até 2011. Depois deixou de se fazer a conta, porque mudaram as nomenclaturas e o Instituto Nacional de Estatística já não consegue acompanhar…
O problema não é só o encerramento de serviços. O problema é que o acesso aos cuidados de saúde, primários ou hospitalares, é como uma máquina em movimento a que vão caindo peças. Todos os dias fica pior. Há quatro anos, eu não tinha qualquer dúvida de que o SNS ia resolver o meu problema de saúde, um bocadinho mais, um bocadinho menos. Hoje, acho que há a convicção generalizada de que, se não se fizerem muitas coisas, o SNS, como prestador, tem muitas dificuldades em fazê-lo. Deixa os problemas de saúde de muitas pessoas por resolver.

Existe o risco de a rede de farmácias se concentrar nos centros urbanos e se afastar das pessoas, como aconteceu à rede de cuidados primários?  
Existe, sim. O risco está em cima da mesa. Temos sido muito criativos a tentar criar formas de apoio a essas farmácias mais frágeis. Lançámos agora uma medida interna, mas não conseguimos resolver o problema sozinhos. Conseguimos, de alguma forma, estancar a degradação da rede. Mas, nos últimos quatro anos, estamos a respirar por uma palhinha e a ver se conseguimos aguentar-nos à tona. Neste momento, somos a rede de farmácias mais eficiente da Europa. Pelo nosso lado, na nossa gestão de custos, na nossa organização, temos feito um esforço extraordinário para conseguir compensar o que não recebemos. Não só somos a rede de farmácias mais barata da Europa, como também a mais qualificada. Isto não é possível de manter. No nosso caso, a crise começou em 2008. São 12 anos permanentemente sob pressão. 

Que medida interna foi essa?  
Entendemos que era fundamental criar mecanismos para apoiar aquelas farmácias que estão no limite da sobrevivência, que precisam de fazer pequenas coisas para se aguentarem: uma pequena remodelação, um investimento em formação, em tecnologia, pequenas coisas. Criámos um primeiro pacote de apoio, de cerca de meio milhão de euros este ano, para estas farmácias. 

Mas disse que não consegue resolver o problema sozinho. 
Também fizemos chegar ao Governo a proposta, que gostaríamos de transformar numa experiência-piloto, de fazer dessas farmácias lojas de saúde do cidadão. Quando pensamos em processos de hospitalização domiciliária, ou em como os agrupamentos de centros de saúde e as unidades de saúde familiar se organizam para chegar às pessoas, essas farmácias podem ser a solução. Têm, pelo menos, um profissional de saúde permanentemente no local, que é o farmacêutico, uma infra-estrutura tecnológica e instalações onde é possível criar um ambiente em que a pessoa resolve todos os seus problemas de saúde.

Quais?
Eu imagino um conceito de loja do cidadão em que todos os serviços do SNS estão disponíveis, desde os meios complementares de diagnóstico à terapêutica, os cuidados de saúde primários, o hospital...

O que é que essa loja de saúde do cidadão poderá fazer pelo meu pai, se ele viver em Castelo Branco?
Permitir-lhe ser acompanhado pelo farmacêutico, mas também falar com o médico especialista, renovar a receita para uma doença crónica. Ele hoje pode não ter dificuldades em gerir a informação para a sua saúde que lhe é enviada. Nós hoje temos a noção de que há uma overdose digital. Muita gente está perdida, corremos o risco de criar novas exclusões por essa via. A farmácia pode contribuir para a literacia digital e em saúde. Portanto, através do farmacêutico em quem confia, na farmácia que conhece desde sempre, ele chegará ao seu médico quando precisa. Com retorno de informação entre profissionais por ele autorizados, pode beneficiar de uma discussão de caso, ver os seus problemas resolvidos, como por exemplo quando falha um medicamento.

E vantagens para o SNS? 
São evidentes. Mantém o contacto, acompanha melhor as pessoas, evita hospitalizações e tratamentos desnecessários. Também poupa dinheiro em transportes. Repare: Não precisa de novos investimentos em instalações. Basta aproveitar o que existe. Um serviço desta natureza fixa as populações, é bom para a economia local. Se uma pessoa sente que, finalmente, tem acesso à saúde… já não precisa de sair da sua terra.


«Os doentes devem ser livres para decidir onde se vacinar e levantar os medicamentos», defende Paulo Cleto Duarte

E o direito dos doentes com sida, com cancro, com esclerose múltipla a poderem escolher a farmácia onde levantar os seus medicamentos, acredita que vai ser uma realidade? 
Eu acho que já é uma realidade. Está a andar muito mais devagar do que gostaríamos, mas nós estamos a falar de uma mudança de paradigma. E não tenho nenhuma dúvida, mais uma vez, de que se criou o consenso de que não faz sentido obrigar um doente a ir ao hospital quando não existe qualquer razão técnica que o justifique. Demorou demasiado tempo a chegar-se a esse consenso, mas ele é muito importante. 

A experiência-piloto do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, com doentes do Hospital Curry Cabral, arrasta-se desde Dezembro de 2016. 
O facto de o Hospital de São João ter usado essa experiência como base, agora revista e melhorada, é sinal de que ela não morreu e pode ser escalada. Isso é muito mais importante do que parece. Agora, nós não estamos disponíveis para a eternizar. Sim, é preciso experimentar. Devemos ir com tranquilidade, com segurança, mas eu tenho de resolver um problema. Temos doentes que seguimos há três anos nas farmácias comunitárias. Está na altura de haver uma decisão. Ou eles voltam à farmácia hospitalar ou continuam na farmácia que escolheram, mas em que condições? Não podemos continuar eternamente a fazer coisas que, depois, havendo já evidência, não se concretizam, nem se materializam.

O professor Vaz Carneiro considera que as farmácias do futuro, para acompanhar doentes com VIH/sida e neoplasias, para vigiar doentes crónicos, vão ter de dar um salto na sua diferenciação. Estão preparadas para isso? 
Não só estamos preparados, como já o estamos a fazer. Iniciámos o Sifarma.Clínico [módulo de apoio à intervenção da farmácia, no sistema informático das farmácias]. Nos últimos tempos, é uma das maiores revoluções, não apenas na rede de farmácias, mas na saúde em Portugal. Porque é uma forma diferente de registar, de interagir com o doente e de ligar os diferentes intervenientes e sistemas, como os cuidados primários, os hospitalares e as próprias farmácias. É ainda um bebé, mas um bebé que nasceu muito robusto e que está a crescer em segurança. 


«Não consigo explicar por que razão só os idosos de Loures têm direito a vacinas comparticipadas na farmácia», critica

Consegue explicar porque só os idosos de Loures se podem vacinar gratuitamente numa farmácia, se a experiência-piloto que decorreu no ano passado permitiu aumentar em 32 por cento a cobertura vacinal deste grupo de risco e foi elogiada por todos? 

Não consigo explicar. Se aplicarmos o princípio da coerência e da felicidade, de Gandhi, o projecto foi bem pensado, bem explicado e ainda melhor executado. Comprovou-se que não há risco para a saúde, que o farmacêutico está devidamente habilitado, que a imunização da população aumenta. As pessoas gostam e podem escolher. Eu não compreendo como é que há entidades, há estruturas, há profissionais e até decisores políticos que se substituem à decisão individual. Eu compreendo a regulação, mas não compreendo alguém que quer decidir por mim, que acha que eu prefiro ir ao centro de saúde e não me deixa escolher. Se há pessoas que preferem o conforto de ir ao seu centro de saúde, estar com o seu médico, ou estar com o seu enfermeiro, eu acho muito bem. Não compreendo é porque é que não lhes é dada a liberdade de fazer o mesmo numa farmácia, nas mesmas condições. Isso é inaceitável e é inexplicável. Mais: o Estado está a pôr fora do sistema pessoas que preferem mesmo ir à sua farmácia, ou não podem ir ao centro de saúde numa hora marcada. Há pessoas que trabalham, têm dois filhos, vivem com o ordenado mínimo. Muitas vezes, não têm tempo para ir a uma unidade de saúde.  Suportam a vacina do seu bolso, ou acabam mesmo por não fazer uma vacina fundamental, porque previne a doença, ausências ao trabalho, picos de pressão sobre os serviços de saúde e, principalmente, mortes evitáveis causadas pela gripe. 

Mesmo assim, as farmácias bateram este ano um recorde de vacinação em todo o país. Vacinaram 550 mil pessoas. 
É claro que Loures teve a vantagem de consolidar esta visão, hoje consensual entre farmacêuticos, médicos, a Direcção-Geral da Saúde, o Infarmed, toda a gente, de que farmacêutico pode aplicar exactamente o mesmo protocolo do enfermeiro em todo o país. Uma coisa é a comparticipação da vacina para pessoas com mais de 64 anos, essa só existe em Loures. Mas a prática e o serviço de administração da vacina, sem necessidade de receita médica, com o devido registo informático, como nos centros de saúde, esse efectivamente está nas farmácias de todo o país. 

Este ano, pela primeira vez, a ANF apresentou uma previsão quanto à expressão da epidemia de gripe no território, concelho a concelho. Que significado tem o novo Despertador das Farmácias? 
Primeiro, é a prova de que os portugueses têm qualidade para desenvolver conhecimento e de que o país é capaz de atrair talento. O Peter, um dos principais investigadores do projecto, é um alemão que escolheu Portugal para viver e para se realizar profissionalmente. Segundo, demonstra a capacidade que as farmácias e o sector tiveram para se preparar para as novas tecnologias, para os novos tempos, para saber usar a informação e tomar decisões baseadas na evidência. São 44 anos de investimento! Não é mérito da actual Direcção, é um processo contínuo. É principalmente mérito das farmácias e da visão que tiveram para investir no desenvolvimento tecnológico. É uma boa resposta àquela questão sobre se estão preparadas para o futuro, para actuar com base na evidência. Terceiro, é a demonstração de que as farmácias são mesmo um dos principais promotores da Saúde Pública neste país. Não só anunciámos o período da actividade gripal, como os locais onde estava a acontecer. O Despertador das Farmácias conseguiu que muita gente ainda se fosse vacinar, adoptasse comportamentos preventivos do contágio e não viesse a contrair gripe. Ofereceu previsibilidade ao sistema de saúde e uma diminuição da pressão sobre os serviços públicos.

«Vou para o Ministério da Saúde a pé ou de bicicleta»

Como conserva a forma física? 
Faço, em média, seis, sete quilómetros a pé por dia. Eu vou para o Ministério da Saúde a pé. Às vezes, quando me atraso, vou de bicicleta. 

Vai para o Ministério da Saúde a pé?  
Sim, ainda ontem fui a pé ter uma reunião com um deputado, a seguir fui à Caixa Geral de Depósitos…

Também vem a pé de casa para a ANF?   
Tento vir, nem sempre consigo. Estou a tentar mobilizar os meus filhos para essa missão, porque eles fazem quase um quilómetro e acham que aquilo é longe, mas estou a levá-los a pé também. Eu achava que não tinha tempo para fazer nenhum tipo de exercício. Comecei a perceber que havia formas de o fazer gradualmente. Comecei por ir despejar o lixo, agora faço caminhadas. Aprendi uma coisa na vida, que é: não consigo mudar o que sou, consigo aperfeiçoar todas as minhas coisas menos boas. E essa, era uma delas.

Algum desporto?
Tento ir jogar futebol ao fim-de-semana. É uma coisa que não tenho conseguido ultimamente, porque tenho tido sempre coisas ao fim-de semana. 

Em que posição joga? 
Eu sou bastante defesa. Há quem diga que sou um jogador daqueles difíceis de passar, para não usar outra expressão. Eu sempre gostei e sempre vivi muito na lógica da protecção, de criar o contexto e deixar a equipa funcionar. Foi sempre assim desde dirigente associativo, foi assim que eu cresci na minha família. 

E a bicicleta?
Comecei por comprar uma muito básica, porque não sabia se a ia usar ou não. Há três anos, achei que já estava a entrar numa fase madura e que precisava de um equipamento melhor. Pedi à família para me oferecer uma bicicleta mais elaborada. No meu dia de anos, aconteceram duas coisas fantásticas. Primeiro, fui buscá-la, fui estreá-la. E a seguir caí, pela primeira vez, a andar de bicicleta. Como se não bastasse, passados dois dias, roubaram-na. Portanto, foi um mau arranque, naquela altura. Agora, retomei. Voltei a pedir uma bicicleta à família no aniversário do ano passado. Estou novamente numa fase de indução.

Desta vez, com cadeado. 
[risos] Espero que não volte a acontecer. Eu tento manter estas coisas, porque me ajudam a ter muito tempo para pensar. Ir daqui para o Ministério a pé, ou fazer caminhadas à noite – quando chego a casa, nem que seja às duas da manhã, não há quase dia nenhum em que não faça pelo menos uma hora a andar a pé ali à volta. Ou de manhã, logo cedo. Ajuda-me muito a libertar a mente.

E a desligar do stress diário? 
Nem sempre consigo. Reconheço que há períodos em que é mais difícil. Sempre que posso, principalmente ao fim-de-semana, desligo mesmo. Eu prefiro trabalhar 24 horas numa sexta-feira para passar o sábado o mais possível com os meus filhos e o domingo também. 


Todos os dias o cão Kai beneficia do vício do dono em caminhadas

Arranjou um cão só para caminhar mais? 
Não, não. O cão é talvez das provas mais difíceis que nós superámos na nossa v​ida como família. A minha mulher tem fobia de cães, tem mesmo medo, deve ter sido mordida. Já a minha filha, que tem agora 16 anos, é apaixonada. Lembro-me da primeira vez… tinha ela um ano e meio, estávamos em casa de um amigo. De repente, não sabíamos dela. Fomos encontrá-la debaixo de uma mesa, deitada, com quatro cães em cima, dois rafeiros, e ela no meio daquilo tudo, feliz e contente, como se estivesse no berço. Aos três anos, escreveu num papel que ia ter um cão.  Desenhou que ia ter o cão. E durante 13 anos nunca desistiu. Ela e o irmão fizeram até uma manifestação em casa, e tentaram pressionar-nos efectivamente. Quando mudámos de casa recentemente, como temos um pequeno pátio, houve essa oportunidade. E eu, que fiz isto muito mais pelos meus filhos do que a pensar em mim, ao fim de uma semana percebi que foi a melhor decisão que poderia ter tomado. O cão é hoje, provavelmente, um dos meus melhores companheiros.

O que é que pretende passar aos seus filhos?
Coisas muito simples. Primeiro, que sejam boas pessoas, quero que eles sejam bons seres humanos. Que olhem para os pais e pratiquem, sejam bons seres humanos. Segundo, que tenham sempre a certeza de que foram capazes de dar o seu máximo, ou seja, de estar bem consigo próprios. De chegar ao fim do dia e dizer «eu consegui porque dei o meu máximo», ou «eu não consegui porque não era capaz, porque eu dei o meu máximo, eu esforcei-me». E viverem bem com isto. Terem a capacidade de perceber aquilo que são capazes de fazer, serem exigentes consigo próprios. Terem mesmo a certeza de que se não atingiram foi porque não conseguiram, não porque não tentaram. E a terceira questão é que não tenham medo de errar na vida. Sejam capazes de viver bem com os seus próprios erros. Porque todos nós cometemos erros na vida, uma ou outra vez. O mais importante, para mim, e gostaria que eles também percebessem, é que se tivermos medo de cometer erros ficamos presos. Ficamos incapazes de andar para a frente. Eu gostava que eles percebessem que há uma diferença entre negligência – e negligência não deve acontecer – e um erro. Quando nós acreditamos numa coisa, só há uma forma de saber se resulta ou não resulta: é fazer. 

Ainda fala com a professora Odette Ferreira todos os dias? 
É engraçado, porque há duas pessoas com quem eu falo bastante. Não sei se todos os dias. Na altura em que eu disse isso era seguramente todos os dias, porque tinha sido logo a seguir a ela nos ter deixado, ou ter ido para onde está. Mas há, de facto, pessoas que nos marcam. Eu considero-me uma esponja. Todos vocês que estão nesta sala marcam e deixam qualquer coisa. E há muitas pessoas que, infelizmente, já não estão connosco e que me marcaram, em quem eu recorrentemente penso, nos meus momentos de... Mas há duas especiais. Uma é, naturalmente, a professora Odette, porque ajuda-me, olho para ela e digo «será que ela sente que isto faz sentido?». No fundo, é como se estivesse a conversar com ela. E outra é um amigo meu, que, infelizmente, faleceu muito cedo. Todos os dias converso com ele. 

O que é que eles lhe dizem? 
Dizem que não está mal. Dizem que tenho de continuar a esforçar-me mais. Dizem para eu não ter medo, nem receio de ser quem sou.​​