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31 julho 2018
Texto de Ricardo Nabais Texto de Ricardo Nabais Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«Enquanto houver farmácias, haverá profissionais de saúde próximos das pessoas»

​Entrevista do presidente da ANF à ROF Abr/Jun.​

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Paulo Cleto Duarte, que preside à ANF desde 2013, fala da necessidade de as farmácias anteciparem o futuro, destaca o papel histórico dos farmacêuticos hospitalares no combate à sida e afirma que a remuneração do Estado pela dispensa de medicamentos comparticipados não cobre os custos desse serviço. O presidente da ANF cita António Arnaut – “As farmácias são o braço longo do SNS” – e alerta: as farmácias que servem populações mais isoladas tornaram-se insustentáveis. Antes da presidência da ANF, Paulo Cleto Duarte já tinha seu sido secretário-geral, entre 2002 e 2013. A sua carreira começou na indústria farmacêutica: entre 1996 e 1999 iniciou-se no ofício na Johnson & J​ohnson. Foi secretário-técnico da Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA, onde trabalhou com a Professora Odette Santos-Ferreira, que considera sua “mestre”. E, de 1999 a 2002, foi secretário-geral da Ordem dos Farmacêuticos. Em 2014, tomaria ainda posse como presidente da Associação Dignitude.

​No âmbito da nova lei de bases em discussão, qual o contributo do sector da farmácia?
Na Convenção Nacional da Saúde, tive oportunidade de clarificar a nossa visão para a Saúde: o sistema de saúde deve organizar-se, de facto, em torno do cidadão. Há um consenso tão alargado em torno deste princípio que podemos dizer que a ANF adere sem reservas a uma visão que é consensual na sociedade portuguesa. O nosso contributo começa na identificação dos princípios que julgamos indispensáveis para percorrermos esse caminho, em direcção às necessidades em saúde dos portugueses.

E que princípios são esses?
Primeiro, proximidade. Um sistema de saúde do século XXI tem de ser capaz de se aproximar das pessoas. Tem de estar, no dia a dia, ao lado de cada português, muito antes dele ficar doente. O sistema de saúde tem de ter profissionais e instituições activos na comunidade, a ajudar cada português na sua opção por estilos de vida saudável e na prevenção da doença. Depois, o sistema de saúde tem de dar uma resposta de grande qualidade quando a doença se manifesta. Isto leva-nos ao segundo princípio: igualdade. Parece um tema ultrapassado, mas infelizmente continua actual. Se o sistema não chega com a mesma intensidade e determinação aos portugueses que vivem no Interior, longe dos centros urbanos, então a igualdade no direito à saúde não está garantida. Para as farmácias, a discriminação consoante o local de residência é tão inaceitável como a económica. O terceiro princípio é a transparência no financiamento. A igualdade tem de começar a ser construída no momento do investimento. Concordamos com a nova geração de políticas públicas que pretende avaliar cada tecnologia de saúde em função dos seus reais resultados na sobrevivência e na qualidade de vida da população. Ora, dessa avaliação devem decorrer critérios de financiamento baseados na evidência, pondo todos os prestadores e tecnologias em pé de igualdade. 

A ANF concorda com a necessidade de maior financiamento da Saúde?
Claro que sim, é uma questão de bom senso. Mais uma vez, julgo que a necessidade de aumentar o investimento público em saúde é hoje motivo de consenso alargado na sociedade portuguesa. A proposta de lei que está em discussão pública tem lá escrito que «o financiamento público deve progressivamente aproximar-se da média da União Europeia». Parece-me uma fórmula feliz e equilibrada de consignar o problema numa lei de bases. Mas uma nova lei de bases não garante, por si só, a solução do problema. Como pediu o Presidente da República, é necessário um consenso nacional em torno da Saúde. Espero que esse consenso permita fixar metas intermédias concretas de investimento, já para os próximos anos, até atingirmos o objectivo de investir em saúde como país europeu que somos. 

Quais são as áreas de acção das farmácias que importa transformar nos próximos anos?
Todas. O envelhecimento da população, a revolução tecnológica e o risco de insustentabilidade económica do sistema de saúde são enormes desafios. Nós vivemos num mundo em mudança permanente. Os sectores de actividade que não souberam interpretar a globalização da economia e a revolução digital desapareceram ou passam por grandes dificuldades. As farmácias, pelo contrário, sempre anteciparam as exigências da sociedade. Por isso gozam de tanto prestígio junto dos portugueses. Uma sondagem da Universidade Católica acaba de mostrar, mais uma vez, que 96 por cento dos portugueses estão satisfeitos ou muito satisfeitos com as farmácias. Não podemos descansar um minuto sobre esses resultados. As farmácias têm de continuar a sua incrível história de melhoria contínua, antecipando o futuro. 

Como podem os farmacêuticos fazer isso?
Como profissionais de saúde, a melhor forma que temos de antecipar o futuro é melhorar, permanentemente, o serviço aos nossos utentes. Vamos desenvolver todas e quaisquer competências profissionais para ajudar as pessoas saudáveis a viver mais anos com qualidade de vida, assim como os doentes a gerir melhor as suas doenças. E vamos abraçar a revolução tecnológica sem receios, melhorando a experiência dos utentes nas farmácias. O novo método 180, de segurança na dispensa e toma de medicamentos, é um bom exemplo disso. Promove duas revoluções, que são como irmãs gémeas: por um lado, facilita extraordinariamente a adesão à terapêutica; por outro, intensifica a relação permanente da farmácia com o seu utente. 

Que novos serviços podemos esperar para a rede de farmácias nos tempos mais próximos?
De acordo com o inquérito da Universidade Católica, que referi há pouco, 90 por cento dos portugueses considera importante que as farmácias desenvolvam serviços diferenciados para os doentes idosos que vivem isolados. Praticamente a mesma percentagem quer que entreguemos ao domicílio a medicação urgente. Mais de 80 por cento pretende maior acompanhamento nas farmácias dos doentes crónicos, com renovação das receitas médicas e partilha de informação com os médicos. O apoio à gestão da sua medicação é desejado por 83 por cento dos portugueses. 76 por cento quer as farmácias a dispensar medicamentos hospitalares. E 75 por cento gostaria que fizéssemos a triagem e o encaminhamento dos doentes em situações de urgência. Temos de olhar para esta mensagem da sociedade. Estamos disponíveis para implementar todos os serviços favoráveis à saúde da população e à sustentabilidade das contas públicas, assim como estamos empenhados na avaliação rigorosa da sua racionalidade económica.
  
A política do medicamento tem sofrido uma grande evolução na última década. Que êxitos destacaria neste domínio?
Persistem problemas no acesso ao medicamento, que não devem ser minimizados, mas julgo que a grande vitória dos últimos governos foi terem evitado que a crise económica se repercutisse directamente no acesso dos portugueses aos medicamentos. Este Governo conseguiu uma vitória importante neste domínio, com os incentivos ao desenvolvimento do mercado de genéricos, que estava estagnado. Essa medida permitiu uma poupança superior a 10 milhões de euros às famílias portuguesas. A experiência de dispensa nas farmácias dos medicamentos para o VIH-sida também se revelou acertada. 



Como avalia essa nova possibilidade? 
Um inquérito da Faculdade de Medicina de Lisboa e da Universidade Católica mostra que os doentes estão satisfeitos. A este propósito, gostaria de sublinhar que a qualidade dos farmacêuticos é percepcionada de forma unânime pelos doentes, tanto em ambiente hospitalar como comunitário. Isso é para nós muito honroso, porque os farmacêuticos hospitalares foram heróis nos anos em que a adesão à terapêutica era muito difícil, devido ao alarme social, às características sociológicas de muitos doentes e ao perfil dos primeiros anti-retrovirais. Passada essa época, sendo hoje o VIH-sida uma doença crónica, ou mesmo uma condição, é natural que os doentes prefiram aceder aos medicamentos nas farmácias dos seus bairros, que garantem a mesma segurança na dispensa e igual qualidade de aconselhamento farmacêutico. 

E o que terá ficado por fazer?
Temos em Portugal um problema grave de sustentabilidade das farmácias, que está por resolver. O Governo sabe que a acumulação, durante anos, de cortes desenfreados e sem critério nas margens e nos preços gerou um absurdo económico. Hoje, a remuneração do Estado pela dispensa de medicamentos comparticipados não cobre os custos das farmácias com esse serviço. Por isso, em 2017, os ministérios das Finanças e da Saúde assinaram com a ANF um protocolo em que se comprometiam a rever o regime de remuneração das farmácias. Porque o Estado reconheceu o problema, que é evidente, ficou acordada a aproximação gradual da remuneração das farmácias ao regime praticado nos países de referência consagrados na lei para a formação dos preços dos medicamentos. Como isso continua por fazer, as farmácias portuguesas continuam a trabalhar com uma remuneração 66% inferior à das farmácias de Espanha, França e Itália. Para além de injusto, isto é uma fonte de destruição económica. Como referia há pouco, tem de haver equidade e transparência no financiamento das tecnologias de saúde. Se os medicamentos são a tecnologia que mais tem garantido tempo e qualidade de vida à população, então a remuneração dessa tecnologia tem de ser igual para todos os agentes da cadeia.

O sector das farmácias atravessou o período de crise económica com alguma dificuldade. A situação entretanto evoluiu de forma mais positiva, acompanhando a tendência económica geral?
As farmácias fizeram um esforço de ajustamento incrível, que começa a dar alguns resultados, mas não podemos ter ilusões. De acordo com os dados de Junho, que acabam de me chegar, 220 farmácias enfrentam processos de insolvência e 443 são alvo de penhoras. Estamos a falar de 23 por cento da rede. As farmácias mais pequenas, que servem as populações mais isoladas, com menor acesso a cuidados de saúde, tornaram-se inviáveis.

Aquando da sua reeleição para presidente da ANF, defendeu que a prioridade da direcção era “Fazer das farmácias a rede de cuidados de saúde primários mais valorizada pelos portugueses”. Em que sentido?
António Arnaut dizia que as farmácias são o braço longo do SNS. A minha mestre, Maria Odette dos Santos-Ferreira, continua a dizer que ainda vai ver as farmácias como principal rede de cuidados primários. Como vê, a nossa ambição é inspirada pelos melhores. Enquanto houver farmácias, o SNS chegará ao Corvo e a Carrazeda de Ansiães. Enquanto houver farmácias, haverá profissionais de saúde próximos das pessoas. Os farmacêuticos, que começaram a fazer formação ao longo da vida muito antes de haver fundos comunitários para isso, e todos os outros que pudermos aproximar de quem deles precisa.

Como poderia implementar uma rede de farmácias que conseguisse suprir determinadas lacunas de serviços de saúde primários?
O nosso objectivo não é substituir ninguém, antes pelo contrário. Se as pessoas estão, de facto, no centro do sistema, então os profissionais de saúde têm de funcionar como uma equipa, uma orquestra afinada. Por isso é crucial a abertura das nossas farmácias a outros profissionais de saúde, como os enfermeiros, os nutricionistas ou os peritos em educação física. Por outro lado, temos de fomentar a integração das farmácias no sistema de saúde, sempre com dois objectivos claros: ganhos em saúde para a população e orçamentais para o Estado. As experiências-piloto que estamos a desenvolver com as USF são estratégicas para o futuro. As farmácias têm de trabalhar alinhadas com os médicos e os enfermeiros de família. Se trabalharmos em conjunto, o cidadão vai orientar-se melhor no sistema, vai tirar maior partido dos serviços e das competências dos profissionais de saúde. Acredito que vamos assumir objectivos de saúde pública comuns, partilhando com o Estado os ganhos em saúde e as poupanças orçamentais alcançadas. 

Esse reforço seria mais dirigido ao Interior do país?
Se a Saúde é um direito universal, o SNS tem de chegar com a mesma eficácia a todos os pontos do território. Ora, isso implica o tal concerto entre os diferentes profissionais de saúde. Claro que ele é mais fácil em Lisboa do que nas terras onde o único serviço de saúde é a farmácia. Nessas circunstâncias, temos de agir com a responsabilidade de ’braço longo’ do SNS. Numa determinada região há pessoas no pós-operatório a precisar de cuidados de enfermagem e de fisioterapeutas? Se as farmácias são o único serviço de saúde que ainda lá está, têm a obrigação de abrir as portas a esses profissionais, aproximando-os das pessoas. Ao Estado, cabe criar condições para o desenvolvimento desses serviços. É urgente devolver a sustentabilidade económica a essas farmácias.

Que avaliação pode fazer da acção do actual Ministério e ministro? 
O ministro Adalberto Campos Fernandes é dos portugueses mais bem preparados para o exercício destas funções. Como é evidente, a experiência como ministro reforçou essa competência, que era evidente à partida. Tem governado em circunstâncias difíceis, como os anteriores e seguramente os próximos ministros da Saúde. Tem actuado sempre como um defensor implacável do interesse público. Isso é um excelente ponto de partida. As farmácias estão focadas em alinhar-se pelo interesse público, para nós é o único caminho. O protocolo que assinámos em Março de 2017 materializa isso mesmo: o que ali está previsto, antes de favorecer a sustentabilidade da rede de farmácias, favorece a saúde dos portugueses e as contas públicas. O protocolo deu muito trabalho às nossas equipas técnicas, foi uma negociação muito séria, mas é um documento natural entre duas partes com objectivos comuns. Devo reconhecer publicamente que o ministro da Saúde tem sempre procurado honrar os compromissos assumidos. Conseguiu-o muitas vezes, mas há uma parte substancial do acordo ainda por resolver. Em política, a evidência às vezes demora a ser implementada. 

E como avalia o mandato da bastonária da OF?
Exemplar e muito inspirador. O reconhecimento da carreira farmacêutica vai ficar para a História como a grande obra deste mandado. Com uma diplomacia e tenacidade sem limites, a senhora bastonária conseguiu corrigir essa injustiça, que persistia há dezenas de anos, sem fim à vista. Esse facto encheu-me de orgulho e de alegria pelos meus colegas de faculdade que seguiram a carreira hospitalar. Só por isso, este mandato já teria sido marcante. Quero aproveitar para testemunhar aspectos ainda mais profundos. A Ana Paula Martins conseguiu melhorar, ainda mais, a imagem dos farmacêuticos aos olhos dos portugueses. Fê-lo, principalmente, aos olhos dos políticos e outros agentes do sector. Sinto que hoje somos mais conhecidos e mais compreendidos graças ao trabalho persistente da nossa bastonária. Por outro lado, somos hoje uma profissão mais unida e orgulhosa de si própria. Sigo os roteiros farmacêuticos com muita atenção e emoção. Temos profissionais incríveis na investigação, nas faculdades, nos hospitais, nas análises clínicas, nas farmácias de todo o continente e ilhas. Eu agradeço à nossa bastonária o facto de me ter dado a conhecer muitos e a confiança no futuro que nos transmitiu a todos.
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