Mário Faria, 24 anos, defesa do Futebol Clube de Roriz, é o 24º campeão da Europa. Foi o futebol a ajudá-lo a recuperar da doença mortal com que lutou. A força da modalidade preferida dos portugueses correu-lhe no sangue como um rio de dois braços. O primeiro, era aquele desejo incontrolável de voltar aos relvados. O outro, foi a campanha da Selecção Nacional em França.
Quando começou o Europeu de Futebol, ele ainda fazia tratamentos de quimioterapia. Vivia para eles. Nos intervalos, tinha de distrair a mente. Até por isso, viu todos os 51 jogos do Campeonato. O futebol tornou o tempo de inactividade «menos pesaroso e mais alegre». O facto de estar doente fê-lo «viver aquela conquista de uma forma muito mais efusiva».
Mais importante foi a lição de esperança que os craques deram a um futebolista amador gravemente doente. Portugal arrancou titubeante e quase irreconhecível, com empates frente à Islândia, Áustria e Hungria. Para surpresa geral, o seleccionador Fernando Santos reagiu dizendo que a equipa só faria as malas depois da final, com o troféu nas mãos. Depois, foi uma cavalgada, mas sempre com emoções fortes: qualificação nos penalties contra a Polónia, vitória sobre o País de Gales, lesão de Ronaldo e pontapé de Éder na final de Paris.
«A Selecção Nacional também começou devagarinho, periclitante, e aos pouco foi ultrapassando obstáculos e conseguiu vencer. Sinto que se passou o mesmo comigo», expõe Mário Faria
A epopeia de Portugal levou o adepto, abalado por uma doença inesperada, a identificar-se ainda mais com a equipa. «A Selecção Nacional também começou devagarinho, periclitante, e aos poucos foi ultrapassando obstáculos e conseguiu vencer. Sinto que se passou o mesmo comigo», expõe Mário Faria.
Ele também venceu e também teve de sofrer para isso. Frequentava o último ano da licenciatura na Faculdade de Desporto do Porto quando tudo se desmoronou, em finais de 2015. A tosse não o deixava em paz há meses. Ele não ligou. Sempre fora saudável. Praticava desporto, alimentava-se bem. Mas uma mãe preocupa-se sempre, parece que sente as coisas primeiro. Tanto insistiu com ele, que acabou por procurar um médico. As análises de rotina ao sangue deram resultados estranhos. A partir daí, foi submetido a uma bateria de exames. Quando veio o diagnóstico, foi duro de encaixar: linfoma de Hodgkin, um cancro que afecta o sistema imunitário, podendo causar a morte. Mário Faria sentiu o mundo ruir de repente.
Foi o início do jogo mais difícil da vida dele. Durou seis meses, quase três mil vezes o tempo regulamentar de uma partida de futebol. Ele contra uma legião de células doentes, que atacam mais rápido do que o Real Madrid.
Os pais tiveram de enfrentar o medo de perder o único filho. Entraram em choque. «Começaram a chorar». Ele não. No início, viveu «numa espécie de limbo, não queria ter noção da gravidade da doença». Depois, atirou-se ao desafio com coragem. «Encarei as coisas de uma forma muito positiva. Acho que, no fundo, eu sabia que ia acabar por correr bem, porque sou muito novo». O prognóstico do linfoma de Hodgkin é especialmente favorável aos jovens.
O regresso aos relvados foi um momento maravilhoso
Mário Faria agarrou-se aos seus 21 anos e aguentou todos os ataques. Como convém a um defesa, correu quilómetros de tratamentos sem parar. Nunca teve de adiar nenhum. Deixou de jogar futebol, de estudar, de sair. Só saía de casa para ir fazer quimioterapia ao IPO do Porto. «Tive de interromper tudo, porque com os tratamentos ficamos muito frágeis. Durante dois, três dias, quase nem conseguimos sair da cama. Não temos força, não temos fome».
Por outro lado, não podia arriscar mais nada, nem sequer uma gripe. «Caso tivesse algum tipo de problema de saúde teria de adiar tratamentos e isso era impensável».
Os pais ficaram em casa com ele. Dia atrás de dia, segundo após segundo. «Percebi o que significa dizerem-nos que gostam de nós. Eu ali senti o que era gostar de um filho». Faziam o possível para o distrair. Jogavam às cartas e jogos de tabuleiro. Viam séries televisivas até o adormecer. «Estiveram sempre ao meu lado, um de um lado e o outro do outro. Ficavam encostados a mim, a dar todo o carinho», recorda o futebolista. Para ele, vencer o linfoma «foi uma corrida a três, não a solo».
Os amigos também foram bestiais. Passaram a juntar-se em casa dele, mesmo nas noites de sexta e sábado. «Ficávamos a jogar cartas quando, se calhar, o que gostavam era de ir para uma discoteca». A doença desperta muitas vezes os mais nobres sentimentos humanos. Até de pessoas «apenas conhecidas» sentiu muita solidariedade. «Houve um grande elo de cumplicidade à minha volta e isso foi a minha maior força».
Os amigos e companheiros de equipa nunca o abandonaram, dentro e fora do campo
Passados seis meses, nasceu o dia em que o médico o informou da remissão da doença. Não só o linfoma tinha desaparecido, como as probabilidades de reaparecer eram ínfimas. «Vai ser sempre uma das melhores notícias que alguém me dará na vida, nem que dure 120 anos», recorda.
O regresso aos treinos de futebol foi outro momento maravilhoso. «Ainda não tinha muitas forças. Mas a alegria ultrapassou claramente a falta de energia, porque só a sensação de voltar a um balneário, calçar umas chuteiras, estar com os meus colegas, ter aquelas brincadeiras, poder tocar na relva, as bolas, o contacto, tudo foi especial», descreve o futebolista.
Continua a ser acompanhado no IPO, é assim nos primeiros cinco anos após a remissão da doença. Antes de cada ida ao hospital ainda tem de fintar os nervos à flor da pele.
O dia em que voltou ao campo foi inesquecível para Mário
A doença mudou completamente a sua forma de viver. «No dia-a-dia, estamos muito focados em coisas que não têm importância. Não reparava em coisas em que hoje reparo. O pôr-do-sol é fantástico e, aqui há uns anos, era só mais um sol que se punha». Trabalha num ginásio e vê o fitness como uma possibilidade de futuro, porque gosta da ideia de «transformar pessoas, fazê-las sentirem-se bem». Também nos outros vê hoje «uma beleza diferente». Da partida mais longa, trouxe uma bola nova para a vida: «Sou muito mais agradecido por poder estar aqui».