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8 fevereiro 2021
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de Ricardo Castelo Fotografia de Ricardo Castelo

No fim do SNS

​​​​​Farmácia de Vilar de Maçada segura à vida doentes esquecidos.​​​

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No Largo do Adro, a Igreja Matriz ergue-se imponente a olhar pelo povo de Vilar de Maçada. A seu lado, o verde infinito das vinhas marca a história da tímida vila transmontana, conhecida pelos bons vinhos e produtos biológicos, nascidos do melhor que a terra dá.


No início da pandemia, o médico de família deixou de aparecer. A população passou a ir à farmácia para tudo​

A cruz da farmácia brilha à distância, a lembrar a esperança em tempos melhores. Numa manhã soalheira de Outono, é para lá que caminha Mariana Martins, de 71 anos. Foi nestas ruas e calçadas que viu passar toda   a vida. Pela altura do seu nascimento, Vilar de Maçada batia o recorde de população com 2.241 habitantes. Desde então, os números não pararam de descer. Os Censos 2011 já só contabilizaram 915 residentes na freguesia, os de 2021 vão apanhar seguramente menos.


Mariana descobriu na farmácia o colesterol elevado, depois de um ano sem ser vista por um médico

«Aqui há muitos idosos», contempla a septuagenária, hesitante. «Como se vê, não anda ninguém na rua. Está tudo em casa ou no lar, que está tão cheio que já não tem lugar para mais ninguém», descreve. Com a chegada da pandemia, a população viu encerrar muitos dos poucos serviços à sua disposição. A começar pela extensão de saúde, que foi a primeira a fechar portas e a mudar-se para Alijó.

Mariana não faz análises de rotina há um ano. Há uns meses, foi na farmácia que descobriu os valores de colesterol a 296. Por aconselhamento do farmacêutico director-técnico, falou com o médico por telefone e conseguiu uma receita. Com a ajuda da medicação, o valor já baixou até aos 206. Mariana não poupa nos elogios a João Matu: «Este doutor foi um deus do céu que caiu nesta terra».   E recorda como a abertura da Farmácia Nova, em 2016, «veio dar uma grande ajuda» a uma população cada vez mais isolada.

«Esta farmácia é um espelho de muitas farmácias pequenas no Interior», afirma o farmacêutico, de 57 anos. Devido à população envelhecida e, em muitos casos, carenciada, o processo de atendimento é mais demorado. Exige maior cuidado na explicação das posologias para a correcta adesão à terapêutica. «Na cidade, em princípio, a pessoa conhece a posologia de um paracetamol e tem maior facilidade em consultá-la, em caso de dúvida; aqui é muito diferente», exemplifica. Nestes meios rurais, herdeiros de muito analfabetismo, o trabalho de um farmacêutico comunitário é «mais exigente, mas também mais recompensador».

Numa terra onde todos se conhecem, os utentes são tratados pelo nome e acarinhados pela equipa como se fizessem parte de uma grande família. Quando rebentou a pandemia, a farmácia tornou-se o centro de referência da comunidade. Ao contrário de outros equipamentos sociais e de saúde que fecharam as portas, continuou a atender toda a gente, mesmo nas fases mais críticas. «A população ficou tão isolada que cheguei a receber chamadas de filhos de utentes, do estrangeiro, para saberem dos seus familiares», recorda João Matu, comovido.

Quando o médico de família deixou de aparecer, a população, alarmada pelo desenrolar da pandemia na televisão, passou a recorrer à farmácia para todo o tipo de esclarecimentos. «Tentei acalmar as pessoas. Disse-lhes que havia sempre uma saída e que estamos cá para ajudar», recorda o farmacêutico.



As pessoas perdem manhãs de trabalho a ligar para o centro de saúde, mas raramente são atendidas

A pandemia cortou o acesso regular da população à prescrição médica. Todos os dias aparecem na farmácia pessoas desesperadas, depois de horas a ligar para o centro de saúde de Alijó, à espera de que alguém atenda os telefones e peça aos médicos para renovar as receitas.

A solução foi a farmácia assumir esse expediente. Todos as noites, depois de fechar as portas, o trabalho do director-técnico só acaba quando pede a renovação de cada uma das receitas anotadas à mão no seu bloco. «Desde Março, já enviei mais de 500 e-mails para o centro de saúde», desabafa. Enquanto a resposta não chega, dispensa os medicamentos a crédito. É a única forma de garantir a continuidade do tratamento, particularmente no caso dos doentes crónicos.


Jorge Moutinho ainda hoje não percebe por que fechou a extensão de saúde de Vilar de Maçada​

A extensão de saúde, fechada sem perspectiva de reabertura, para além de Vilar de Maçada, servia as aldeias ao seu redor: Pópulo, Vila Verde e Ribalonga. «Agora, para ir ao médico, são 44 quilómetros, ir e vir. Já viu?», comenta Jorge Moutinho, com indignação. «Estamos a falar de cerca de dois mil utentes que ficaram sem médico de família», lamenta o homem, de 69 anos. Devido à falta de transportes públicos e às reformas baixas, a maioria da população idosa, sem carro próprio, tem grandes dificuldades em aceder a cuidados de saúde.


«Quando alguém fica muito tempo sem vir levantar a medicação, sei que não está bem», afirma João Matu

Ao balcão, também João Matu deu pela falta de vários doentes crónicos no decorrer da pandemia. «Quando as pessoas ficam muito tempo sem vir levantar a medicação prescrita, eu sei que alguma coisa não está bem», afirma o farmacêutico. Por isso, pelo menos uma vez por mês, às sete horas da manhã, arranca no seu carro e leva a farmácia até cada uma das aldeias das redondezas. No banco de trás, carrega uma banheira de transporte de medicamentos recheada de aparelhos de medição de tensão arterial e de parâmetros bioquímicos. No coração, a ânsia de ajudar os que vivem longe de tudo e todos.

À sua chegada, as pessoas correm até ele para lhe contarem o que lhes pesa na alma e na saúde. Muitos chegam a estar vários meses com os tratamentos interrompidos e os sintomas descontrolados. «Há uns dias encontrei uma senhora que não tomava o medicamento da diabetes há cinco dias. Tinha tonturas, sentia-se mal. A doença estava fora de controlo», relata.

Às portas de Vila Real, a pouco mais de 114Km do Porto, há muitos doentes esquecidos, mas nunca pelo doutor João.

 

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