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10 agosto 2020
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de José Pedro Tomaz Fotografia de José Pedro Tomaz

Nascida para amar

​​​​​​​Bárbara cedo aprendeu que os dias são para aproveitar, um de cada vez.

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​«1-2-3-4, 1-2-3-4». A contagem ritmada marca o compasso musical. Numa tarde ensolarada de segunda-feira, Vivaldi entoa na acolhedora sala da escola de música A Pauta. A intensidade doce do violino flui facilmente nas mãos de Bárbara. Perfeccionista e de sorriso tímido, vai respondendo aos desafios da professora Joana, com olho atento na pauta, como na vida. 

Bárbara Barros é uma mulher do Norte. Nascida e criada no Porto, os seus conhecem-na pelos olhos sorridentes, a fé sem limites e a mão sempre pronta a estender a quem precisa. A vida cedo ensinou-lhe que os dias são para aproveitar, um de cada vez. Que há sempre uma lição de humildade na bondade do outro. E que para o amor não há barreiras, nem na medicina. 

Farmacêutica de profissão, desde tenra idade sabia estar destinada a seguir as pisadas da família. Entre risos, confessa que a paixão vem dos tempos em que ir para a farmácia ajudar era um castigo: «Eu aprendia imenso. E o bichinho ficou lá». Actualmente, é na Farmácia de Gondarém, no Porto, que a directora-técnica passa o dia. Junto do mar, onde se sente em casa. 


Na Farmácia de Gondarém, Bárbara continua o legado da família

Embora o corpo já desse sinais há vários meses, foi por mera coincidência que, em 1997, foi diagnosticada com doença de Berger. Numa consulta de rotina, o aparelho de medição da tensão marcava 25/12. Aos 26 anos, Bárbara ficou internada no hospital durante vários dias. As análises deixa​ram dúvidas que apenas a biopsia renal pôde esclarecer. 

A viver com o diagnóstico há mais de vinte anos, Bárbara já se habituou a “trocar por miúdos” a nefropatia por IgA: «A doença é auto-imune. Em caso de infecção, os anticorpos fixam-se no rim e atacam-no, como se de um corpo estranho se tratasse». O resultado é uma insuficiência renal, que se vai agravando com o tempo. Tarde ou cedo, o transplante renal é obrigatório sendo a duração do rim transplantado entre dez e 15 anos. 

Durante alguns meses a doença foi silenciosa. No entanto, o inevitável haveria de chegar mais cedo do que o desejado. Pouco mais de um ano após a descoberta, numa consulta de acompanhamento da doença, um vírus aparentemente inofensivo foi o suficiente para trazer as más notícias: era preciso encontrar um dador e fazer o transplante o mais rapidamente possível. 

Na altura com apenas 28 anos, foi transferida para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, onde iniciou os processos de diálise e de procura de dador. Apesar de, naquele tempo, o transplante vivo ainda não ser uma prática comum no país, a família uniu-se e, sem rodeios, os testes de compatibilidade arrancaram.

Entre os cinco irmãos, Mariana, a mais nova, era a mais compatível. «Mas a minha mãe, na altura com 60 anos, sabia que quando fosse necessário fazer um novo transplante já não poderia entrar na corrida», conta Bárbara. Por isso, intercedeu junto do médico responsável para que fosse ela a ceder o rim. 

A equipa acedeu ao pedido. «O médico compreendeu a minha mãe e disse que realmente há coisas muito mais fortes do que a medicina», recorda a farmacêutica. Entre elas, a vontade e, tantas vezes, o amor.

Em Abril de 1999, Bárbara recebeu um rim da mãe e, com ele, uma esperança renovada. Aos poucos, a energia voltou e o corpo começou a recuperar. Alguns meses depois, mudou-se para Torres Novas por demanda da profissão do marido. E por lá ficou durante três anos. 

O desejo de ser mãe haveria de chegar na mesma altura. Os médicos desaconselhavam, mas Bárbara insurgiu-se: «Deve vir da mãe», brinca. «Eu disse-lhes: “Vou ter um filho. Vocês arranjem-se”». E engravidou da «Joaninha». 

A gravidez de risco obrigou-a a parar. Uma tarefa difícil, para alguém que se recusou a deixar de trabalhar, até mesmo durante o período de preparação para o transplante. «Eu achei que não podia ficar em casa sem fazer nada», lembra. 

As aulas de violino foram um acaso feliz. Queria aprender um instrumento e tinha na memória a paixão do avô pelo violino. Na nova cidade encontrou uma escola onde iniciou a aprendizagem e a formação musical. A gravidez, como a música, fluiu naturalmente. E a 10 de Novembro de 2001 Bárbara tinha a primeira filha nos seus braços. 


Sempre quis aprender um instrumento e tinha na memória a paixão do avô pelo violino. Para além disso, dá catequese e ajuda no Banco Alimentar

De regresso à cidade natal, voltou também para a profissão que tanto adora. Às aulas de violino somou o voluntariado no Banco Alimentar Contra a Fome, a catequese e a coordenação do grupo de jovens de uma paróquia vizinha.

Em 2009 adoptou o Rafael. E a família estava, finalmente, completa. «Tenho dois filhos espectaculares» – sorri – «e tudo o que quero é vê-los felizes e unidos». 

Foi no final de 2012, quando o corpo voltou a acusar fraqueza, que Bárbara soube que tinha chegado o momento de passar novamente pela transplantação renal. «Os sintomas de não-filtração percebem-se rapidamente», explica a farmacêutica. «Ficamos tóxicos e o organismo começa a dar sinais disso». 

Uma vez mais, a família veio amparar-lhe a queda: «A coisa que nós temos de mais bonita é a ligação entre os irmãos». Bárbara haveria de receber um rim da irmã Mariana, a 13 de Maio de 2013. Um dia que, pelo simbolismo religioso, «só podia indicar que tudo iria correr bem». Aos 49 anos, Bárbara é mãe orgulhosa, farmacêutica apaixonada e mulher invencível. E nunca «uma coitadinha». A doença, garante, ensinou-lhe a ver a vida com outros olhos. «Como é que, de repente, uma mãe e uma irmã decidem dar assim um rim? Uma peça do seu organismo? Olhar para o outro e ver que é tão mais gigante do que nós faz-nos viver de forma mais humilde e responsável». 

Hoje, Bárbara tem uma missão: partilhar o seu testemunho com quem precisa de alento. Aos que têm medo, deixa uma palavra: «De todo o processo, a diálise é a parte mais violenta. Mas o corpo adapta-se. E nós aguentamos sempre as coisas que a vida nos vai trazendo». 

A mulher que não gosta de clichés acredita com toda a fé que «quando a vida fecha uma porta, abre uma janela». E recorda que a esperança é algo de precioso: «Quando morre, as pessoas vêem a vida muito escura». 


«A minha vida é assim: simples, mas muito boa»

Como no violino, muitas vezes a vida corre sem pauta. Por isso, Bárbara não tem sonhos inalcançáveis. Por onde passa, distribui alegria, amor, esperança. «A minha vida é assim: simples, mas muito boa» – remata – «E o meu sonho grande é ser feliz».​

 

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