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5 setembro 2022
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de André Oleirinha Vídeo de André Oleirinha

Minha amiga diabetes

​​Rui Pedro cresceu a respeitar a doença. Hoje, sente que não o impede de fazer nada.​

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Rui explica, com voz tranquila, os procedimentos da administração da insulina. Fala com otimismo, sempre a desdramatizar: «É muito fácil. Quando fazes tudo bem, corre lindamente». Impressiona a maturidade do miúdo que vai celebrar o 19.º aniversário a 17 de setembro. Continuam a fazer-lhe sentido as palavras da mãe, que começou a ouvir aos sete anos, quando recebeu o diagnóstico de diabetes tipo 1: «A diabetes é tua amiga. Se a tratares bem, não te fará mal». Hoje são amigos, ele e a diabetes, mas nem sempre foi assim. Rui viveu altos e baixos até aprender a conviver pacificamente com esta doença crónica comum, que afeta um em cada dez portugueses, mas grave.

 

​«Se o Rui desmaiar devido a hipoglicemia, tem de administrar imediatamente uma injeção de emergência, para lhe salvar a vida»

Foi no Natal de 2010 que chegaram os primeiros sintomas. Rui queixava-se de sede, voltou a fazer xixi na cama, tinha fome, emagrecia. No dia em que disse «Mãe, não aguento a sede», Marisa Nunes percebeu que não podiam ser só vestígios da gripe recente. O pai dela era diabético tipo 2, ela sabia que a sede era um sintoma de excesso de açúcar no sangue. No último dia do ano, Rui fez o teste à glicémia numa farmácia. As festividades adiaram para 4 de janeiro as análises no laboratório e quase foi tarde demais. «Quando soube dos valores, a médica de família disse-me para ir para o hospital imediatamente: “ele pode entrar em coma por falta de insulina”».

Quando chegaram ao Hospital Dona Estefânia, os valores da glicémia eram tão altos que a máquina já não conseguia lê-los. O sangue estava contaminado por corpos cetónicos, uma substância química que o organismo produz quando começa a utilizar gordura, em vez de glicose, como fonte de energia. Rui já tinha dores no corpo, indício de que os músculos estavam a entrar em falência. Em menos de cinco minutos, Marisa soube que o filho ia ficar internado. «O enfermeiro chamou a médica a correr, dizendo-lhe: “Temos aqui um diabético inaugural”». Foi por pouco: mais 12 horas e o filho entraria em coma, disse-lhe um médico.

Marisa demorou a aceitar que «era para sempre», que a doença do filho não ia passar com alimentação saudável. Durante os dez dias em que Rui ficou internado no hospital do Barreiro, zona da residência, os pais aprenderam os procedimentos para cuidar dele. Nos primeiros tempos, revezavam-se para irem à escola administrar a insulina. Depois as auxiliares de educação, formadas pelo hospital, substituíram-nos. Com sete anos, Rui tinha medo das agulhas; aos nove, recebeu uma bomba de insulina e ganhou autonomia. 


A diabetes muda a dinâmica familiar e gera problemas inesperados. «É importante toda a família estar envolvida», diz a mãe, Marisa Nunes

Os pais tiveram apoio psicológico, o irmão também. Tinha nove anos e sentia-se abandonado quando Rui começou a ser o alvo de toda a atenção. Quando disse que seria melhor também ele ter diabetes, os pais levaram-no ao hospital para aprender a tomar conta do irmão. «Pensámos que estávamos a protegê-lo, evitando incluí-lo no processo, mas na realidade deve ser ao contrário. É importante que toda a família esteja envolvida», concluiu Marisa. Entre os quatro, aprenderam a lidar com a diabetes. Por exemplo, a não irem todos a correr «a cada “ai” do Rui». Para ele, foi importante. O excesso de atenção, por vezes, fazia-o sentir-se «o coitadinho ». Mas nunca, nos 12 anos de convivência com a diabetes, se sentiu discriminado. Conta com o apoio da família, dos amigos e, agora, da namorada. «Estão lá sempre», sabe, e são uma motivação para cuidar melhor de si. «Quero estar bem, para que não se preocupem comigo».

Para Marisa Nunes, o maior desafio foi «ensinar o Rui a respeitar a diabetes». A estratégia foi não diabolizar a doença. «O Rui Pedro nunca me ouviu dizer “maldita diabetes!”». A mensagem passou. «Ainda hoje penso que, se não tratar bem a diabetes, temos o caldo entornado», diz com um sorriso. Quando bem controlada, a diabetes é uma doença crónica que permite levar uma «vida 100% normal». Mas traz consigo uma enorme ameaça, que pode ser fatal. «Se o Rui desmaiar devido a hipoglicemia, tem de administrar imediatamente uma injeção de emergência, para lhe salvar a vida», explica a mãe. Daí a importância de que quem o rodeia conheça a doença e saiba administrar a injeção. A longo prazo, o mau controlo da diabetes pode provocar cegueira, problemas nos rins ou pé diabético. 

Sim, não é boa ideia arriscar ter a diabetes como inimiga, mas no início da adolescência, «depois de sete anos de doença», Rui estava farto. «Aos bocadinhos, tentava esquecer que tinha diabetes», resume. Fora de casa, deixou de fazer as medições e de administrar insulina antes de comer. Começou a mentir aos pais e à médica quando os valores da glicemia disparavam. Numa consulta trimestral, foi apanhado. Recebeu um raspanete dos grandes da enfermeira Mara, a mesma que lhe disse, aos sete anos: «Vou ser a tua enfermeira até aos 18 anos, menos um dia», e que hoje é uma amiga. Rui tem ideia de que o período de rebeldia durou cerca de meio ano, mas a mãe afirma que foi um ano e meio de preocupação com o filho que chorava, e dizia que «já não aguentava, que ninguém o compreendia, que só queria que a diabetes passasse». 


Rui sempre foi desportista. Pratica futsal desde os seis anos, e recentemente apaixonou-se pelo ciclismo

Rui fez o seu caminho de aceitação. «Percebi que tinha de cuidar de mim. Hoje sou totalmente autónomo». Sabe identificar as sensações do corpo: visão turva e fraqueza quando os valores descem, dores no corpo todo quando sobem. «Quando sinto sintomas, faço a medição e corrijo logo». Estar controlado resulta de um trabalho conjunto dos pais, amigos, da equipa de saúde e, sobretudo, seu. «O mais importante é eu estar bem comigo mesmo, senão não há hipótese». Hoje, diz, sem hesitar: «As pessoas têm de saber viver com o que têm. Há pessoas que vivem com doenças gravíssimas; a diabetes é uma doença para a vida, mas não me impede de fazer nada. Com os devidos cuidados, posso fazer tudo». Rui estuda Contabilidade e Administração, em Lisboa, pratica futsal e ciclismo, sai à noite com os amigos e a namorada, pode comer de tudo. «A diferença é que, como o pâncreas não liberta insulina para o que como, tenho de administrá-la artificialmente», resume.

Continua a haver um grande desconhecimento em relação à diabetes. «Muita gente acha que um diabético não pode comer açúcar, quando um pacote de açúcar pode salvar-lhe a vida, é o seu medicamento», diz Marisa. O caso do Rui serviu para informar muita gente sobre a diabetes: amigos, colegas de escola, pais, professores, auxiliares e treinadores. A família levou à letra a ordem da enfermeira: «Estão proibidos de fazer a pica ou administrar insulina numa casa de banho!». Rui tinha autorização para administrar insulina na sala de aula, se fosse preciso. Esta atitude de normalidade face à doença ainda não é a regra, lamenta Marisa. «Muitos jovens têm vergonha de assumir a doença, associam as seringas à toxicodependência». Não esconder pode ser sinónimo de socorro imediato. Pode salvar vidas.

 

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