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6 dezembro 2018
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de Anabela Trindade Fotografia de Anabela Trindade

Estamos em guerra

​Bactérias resistentes ameaçam matar mais do que o cancro.

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Farmácia Coelho - Braga​
«Bom dia, dona Judite! Como vai?». A farmacêutica cumprimenta a dona da mercearia da porta ao lado, enquanto vai observando a secção das frutas, na companhia da colega Gisela Santos. A anfitriã pesa cuidadosamente o saco de pêras. «É só, doutora?», pergunta, enquanto confere o troco. «Por hoje sim», mas entre vizinhos há sempre tempo para dois dedos de conversa.

Aos 50 anos, Judite Vaz tem memórias da Farmácia Coelho desde os tempos das visitas com os pais e os avós. E foi na mesma rua que, há um ano, inaugurou a mercearia onde vende os produtos da sua horta e de produtores locais.



Quando chegam os meses mais frios, a rinite é a sua pior inimiga. Durante um desses episódios, com febre e dores de garganta, achou que os seus sintomas pediam antibiótico. Deu um saltinho à farmácia, onde a aconselharam a fazer um teste rápido para identificar a origem do problema. «A doutora fez-me o teste para ver se era uma bactéria ou um vírus e realmente era vírus», explica, «porque se fosse uma bactéria precisava de antibiótico».

A iniciativa arrancou há quatro anos, instigada pela preocupação com o uso adequado do medicamento. A directora-técnica, Catarina Machado, esclarece que, segundo a norma 020/2012, «o diagnóstico da amigdalite aguda, principalmente na idade pediátrica, não pode ser baseado exclusivamente nas manifestações clínicas». Com base nas indicações da Direcção-Geral da Saúde, a equipa decidiu implementar na farmácia o teste rápido para detecção de streptococcus pyogenes por exsudado faríngeo.

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A directora-técnica, Catarina Machado, implementou os testes para combater o uso inadequado dos antibióticos

«Éramos constantemente solicitados para vender antibióticos sem receita», desabafa Gisela Santos, «e é muito difícil explicar que nem sempre é necessário e não é assim que funciona». Além de lhe permitir esclarecer melhor o utente, a farmacêutica de 33 anos considera que o facto de o teste ser feito na farmácia reduz o risco de contágio e contorna as filas de espera.

Para o pediatra e vizinho José Luís Fonseca, é urgente dar a conhecer às pessoas este teste. «Há alguns anos, nós olhávamos para a garganta e dizíamos se a infecção era ou não bacteriana», recorda, «mas chegámos à conclusão que havia um factor de erro enorme».

O médico, de 66 anos, não tem dúvidas de que «os antibióticos são armas importantíssimas no combate às infecções». Mas deixa um alerta: «se não tomarmos medidas para controlar o seu consumo, as resistências serão tais que, em 2050, poderão provocar mais mortes do que o cancro». A OCDE emitiu em 7 de Novembro uma previsão dramática: as bactérias multirresistentes poderão causar mais de 40 mil mortes em Portugal, uma média de 1.100 por ano até 2050. Na Europa, América do Norte e Austrália, a organização prevê 2,4 milhões de mortes no mesmo período.

Perante esta ameaça, o pediatra sublinha a importância da colaboração entre profissionais de saúde em campanhas de divulgação. Mas os farmacêuticos, garante, «têm um papel fundamental no contacto directo com a população», de modo a «garantir que o medicamento está a ser usado para aquela situação, na dose certa e durante o período indicado».


«Se não tomarmos medidas, as resistências vão matar mais do que o cancro», avisa o pediatra José Luís Fonseca. Por isso, recebe de braços abertos a colaboração da farmácia

Com o tempo, o passa-palavra foi trazendo mais utentes à farmácia, alguns já por indicação dos médicos da região. Catarina Machado revela que, nestes quatro anos, cerca de 80 por cento das infecções testadas eram de origem viral – o que significa que apenas 20 por cento dos utentes precisavam de tomar antibiótico. A farmacêutica, de 41 anos, afirma que o impacto do teste deixa a equipa motivada para implementar mais serviços individualizados. Tudo a pensar no bem-estar de uma comunidade que já é quase uma família.

Paulo Machado, de oito anos, chega à Farmácia Coelho ao final da tarde, depois da escola. Como é hábito, entra de mão dada com a mãe e a avó. Grácia Barbosa, de 42 anos, conta que, para o filho, é muito fácil fazer este teste – tão fácil, que já o fez quatro vezes. «Eu não quero dar antibióticos ao meu filho sem ter a certeza de ​que é necessário», declara. Por isso, está muito agradecida pela iniciativa e não se cansa de passar a mensagem a outras mães.

Hoje é a avó, de 66 anos, que vem fazer o teste. E o perito na matéria está cá para ajudar: «não custa nada, avó». Com uma zaragatoa, a farmacêutica Gisela recolhe uma amostra da zona das amígdalas em segundos. Enquanto liga o temporizador, vai explicando o processo: «Agora misturamos com este reagente, mexemos durante um minuto e pomos na cassete». Segue-se uma espera de cinco minutos.

Sentado na maca ao lado, Paulo abana as pernas a um ritmo impaciente e vai contando como a avó é a cozinheira lá de casa. Maria da Conceição ri-se: «Não me dão nem uma folga». Por causa dos gostos requintados dos mais novos, não se lembra da última vez que comeu uma boa massa à lavrador – mas um dia destes há-de vingar-se.

No meio das gargalhadas, lá aparece o resultado. Um só traço, o teste é negativo. Não é desta que é preciso tomar antibiótico. Com a cozinheira mais descansada, a animação desdobra-se em conversas sobre a culinária e a vida. Nesta sala de consulta farmacêutica brinca-se com tudo, menos com a saúde.
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