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9 novembro 2021
Texto de Pedro Veiga Texto de Pedro Veiga Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes

Ensinar a respirar

​​​​Intervenção farmacêutica reduz consultas de pessoas com asma e doença pulmonar obstrutiva crónica.​

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«Tenho umas coisinhas no pulmão que ficaram de uma broncopneumonia mal curada e agora ele não trabalha a 100 por cento. É daí que vem a falta de ar, o querer respirar e quase não poder», lamenta Dália Martins. Não pode pegar em pesos, nem fazer uma boa caminhada. «Tem de ser tudo devagar, com calma», descreve a algarvia de 78 anos. Em 2016, as dificuldades respiratórias passaram a fazer parte da sua vida. Tem de recorrer a um dispositivo inalatório pelo menos duas vezes por dia. «Fui tratada em Faro e os médicos disseram-me que tinha de usar a bomba, de manhã e à noite», recorda, «mas havia dias em que tinha mais falta de ar e a meio da tarde precisava de dar outra vez à bomba».

Em 2019, um sopro de vida. Numa ida à Farmácia Algarve, em Quarteira, Dália Martins foi convidada a participar no projecto INspira. O estudo-piloto, que envolveu 48 farmácias de três distritos e mais de 200 portadores de asma ou doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), procurou resposta a duas questões: quem utiliza dispositivos inalatórios fá-lo correctamente? E, se não, pode uma intervenção farmacêutica estruturada melhorar essa utilização?


A farmacêutica Maria Romanciuc pede aos utentes para mostrarem como usam as bombas de asma ​

«Percebemos que, no momento da prescrição e mesmo da aquisição das bombas, muitas vezes não era explicado aos doentes como utilizá-las», esclarece Daniela Dias, farmacêutica na Farmácia Algarve. «Pedimos às pessoas que participaram para exemplificar a técnica, para ver se estavam a cumprir todos os passos e podermos corrigir o que fosse necessário», completa Maria Romanciuc, da mesma farmácia, «e verificámos que quase toda a gente usava mal o inalador».


O pneumologista José Alves defende a intervenção farmacêutica
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A constatação não surpreende José Alves, pneumologista, presidente da Fundação Portuguesa do Pulmão e principal dinamizador do projecto INspira. «Há uma relação directa entre sintomatologia e deficiente técnica de inalação», explica, «e as inalações não são imediatamente compreensíveis, daí a necessidade de ensinar e reensinar os doentes».

Ao longo da carreira, em consulta, «pedia às pessoas para fazerem uma inalação e tornava-se evidente que elas não sabiam fazer aquilo». Mas quem os podia ensinar? Para o médico, o farmacêutico era a resposta óbvia. «E, pelos vistos, tinha razão, porque as pessoas que aderiram sentiram-se bastante melhor».


Com a ajuda da farmácia, Silvana só precisa de usar o inalador uma vez por dia

O programa permitiu detectar utilizações erradas já com vários anos. «Não estava a fazer bem a bomba. Não expirava o ar todo dos pulmões antes de usar, por exemplo. Agora estou muito melhor», confirma Dália Martins. Silvana Bonfim, também cliente da Farmácia Algarve e participante no estudo, reforça a ideia. Asmática desde os 18 meses, a cozinheira de 42 anos confessa que «antes usava duas, até três vezes ao dia». «O meu trabalho é uma correria», explica, «e sem bomba eu não consigo, mas agora uso só de manhã, antes de entrar no trabalho, e passo o dia bem».


Farmacêutica Daniela Dias explica a técnica a Dália Martins

Depois de seis meses de intervenção farmacêutica, a percentagem de pessoas com utilização perfeita das bombas de asma subiu de 24 por cento para mais de 70 por cento. O número de consultas médicas agendadas também caiu. No início do estudo, um em cada dois utilizadores tinha consulta marcada. Seis meses depois, apenas um em cada cinco tinha uma deslocação ao médico no seu calendário. «Se usa bem a medicação», conclui José Alves, «o doente tem menos internamentos, menos agudizações, menos gastos em corticóides, menos gastos em antibióticos».


João Patrício, da Farmácia Central do Cacém, defende a generalização do projecto INspira

Para João Patrício, da Farmácia Central do Cacém, outra das participantes no projecto INspira, a intervenção das farmácias «é fundamental, porque o sucesso desta terapêutica passa muito pela boa utilização do dispositivo inalatório». «O grande privilégio que o estudo permitiu foi tempo: mais tempo e mais disponibilidade com o utente para fazer essa avaliação», considera, «porque ao balcão tende a ser uma coisa mais rápida, mas nós temos a obrigação de ter o cuidado de perguntar». Fazer da intervenção, adoptada no estudo-piloto uma prática regular, na interacção das farmácias com as pessoas com asma ou DPOC, parece-lhe o caminho a seguir: «existem vários agentes de saúde e todos temos o nosso papel, todos temos de ter a nossa intervenção, e este é realmente um aspecto onde nós, farmacêuticos, podemos mais uma vez demonstrar o nosso grande valor dentro do sistema de saúde».


«Ver os doentes a utilizar os inaladores permite corrigir as falhas», afirma a farmacêutica Filipa Sabugueiro, em consulta com Leonor Ruas

As farmacêuticas que geriram a implementação do projecto INspira na Farmácia Normal, no Barreiro, já faziam acompanhar a dispensa de dispositivos inalatórios de um aconselhamento longo sobre a sua utilização. Mesmo assim, notaram diferenças. «Não conhecíamos tão bem os inaladores como passámos a conhecer e, apesar de sabermos que era comum haver alguns erros no uso, ter os doentes a utilizá-los à nossa frente permitiu observar algumas falhas que podiam ser corrigidas», afirma Filipa Sabugueiro. «As pessoas que corrigiram os erros de utilização dos dispositivos registaram melhorias ao nível do cansaço que sentiam», descreve Daniela Leite.

Mas como alargar esta intervenção estruturada à rede de farmácias? Afinal, obriga a um diálogo longo, em que doente e farmacêutico têm de exemplificar a técnica de inalação para identificar e corrigir erros. Demora tempo e ocupa recursos humanos, dois elementos preciosos. O pneumologista José Alves sugere o financiamento do serviço. «Se a intervenção do farmacêutico torna o medicamento mais rentável, há uma mais-valia», justifica, «é dar uma parte dessa mais-valia à farmácia, arranjar uma ligação entre o sistema de saúde e a farmácia de maneira a ela ser ressarcida pelo ensino do uso da medicação».

O benefício para as pessoas com doença é inegável. Maria Leonor Ruas, 67 anos, foi seguida na Farmácia Normal no âmbito do projecto INspira, e sublinha a importância de fazer chegar a melhor informação a quem utiliza os dispositivos inalatórios. «Em conversa com os outros, a gente às vezes ouve “ah, eu faço assim e faço assado” e até podemos achar que estão a dizer alguma coisa errada, mas quem sou eu para dizer que estão a fazer mal?», pergunta a antiga bancária. «Eu acho que as pessoas que têm competência é que devem fazer isso, não é? Como os farmacêuticos».


CEFAR na Respiratory Medicine

Pode a intervenção dos farmacêuticos melhorar o uso de dispositivos inalatórios por quem sofre de doenças respiratórias crónicas? Foi a esta dúvida que o projecto INspira procurou dar resposta. O estudo-piloto, realizado pelo Centro de Estudos e Avaliação em Saúde (CEFAR), em 2019, envolveu 48 farmácias e 201 doentes com asma ou doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC). Grande conclusão: uma intervenção estruturada dos farmacêuticos aumenta a eficácia do uso das bombas para a asma e DPOC. Exemplo disso: a percentagem de doentes que passaram a fazer uma utilização sem falhas do seu dispositivo inalatório subiu de 23,9% para 70,5% após a intervenção farmacêutica. Outro exemplo: o número de doentes com consultas agendadas caiu de 49% no início do estudo para apenas 18,6% no final. As conclusões do estudo-piloto podem ser lidas na íntegra no artigo «Effectiveness of a pharmacist-led intervention on inhalation technique for asthma and COPD patients: The INSPIRA pilot cluster-randomized controlled trial», publicado na edição de Agosto de 2021 da revista Respiratory Medicine.
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