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2 dezembro 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Luís Silva Campos Fotografia de Luís Silva Campos Vídeo de André Torrinha Vídeo de André Torrinha

Débora roda por cima

​A tragédia deu-lhe verdadeira vontade de viver. 

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​Débora Silva faz deslizar a cadeira de rodas com destreza entre as mesas da esplanada onde costuma almoçar. Todos a conhecem, ela fala jovialmente com toda a gente. Uma senhora diz-lhe, a brincar: «Vá, liga o motor!». Mas a cadeira é manual, ela prefere assim: é mais leve e fácil de transportar no carro, e obriga-a a exercitar o corpo. Entre os muitos objectivos da jovem de rosto bonito e olhos tremendamente azuis está o de evitar engordar, como acontece a muitas pessoas que dependem de cadeiras de rodas. 

Débora é açoriana, escolheu Faro para viver. Todos os dias conduz, sozinha, desde a casa onde mora com o namorado e a cadela, até ao Espaço Saúde em Diálogo. Aí trabalha a fazer o que mais gosta: apoiar a população idosa vulnerável do concelho. 


Todos os dias conduz, sozinha, para o trabalho. Os movimentos rápidos com que monta e desmonta a cadeira parecem ausentes de esforço

No lugar contíguo ao condutor traz a cadeira, que monta à chegada em movimentos rápidos que parecem ausentes de esforço. Num impulso transfere o corpo do banco do automóvel para a cadeira e percorre os últimos metros entre os prédios altos. Só uma rampa demasiado íngreme lhe trava a marcha. No café ao lado há sempre alguém que ajuda e Débora aceita com agrado. «Se não supero de uma maneira, supero de outra», repete amiúde. A máxima de vida revela a determinação e teimosia com que gere os dias desde o acidente de viação que a deixou paraplégica. 

Débora tinha 18 anos, não se lembra do acidente nem do atribulado transporte pelas ilhas até “aterrar” no Hospital de São José, em Lisboa, 48 horas depois. A prioridade foi salvar-lhe a vida, reparar as várias lesões internas: um pulmão e o intestino perfurados, costelas partidas, lesões no braço direito, fracturas nas vértebras do pescoço, um rim que não foi possível salvar. Esteve um mês em coma induzido, enfrentou nove operações cirúrgicas, uma delas à medula espinal. Voltar a andar nunca foi uma possibilidade.

O acidente aconteceu há 11 anos na ilha do Pico, nos Açores, num dia de temporal. Débora seguia com a mãe e o irmão atrás da ambulância que transportava o avô, após um acidente cardiovascular (AVC). O carro despistou-se e caiu numa ribanceira com seis metros. 

 
No Espaço Saúde em Diálogo, em Faro, trabalha a fazer o que mais gosta: apoiar os idosos vulneráveis do concelho

Passou quatro meses nos cuidados intensivos, Natal e passagem de ano incluídos, sem o apoio da família, que ficou em convalescença no Pico. Tornou-se a mascote do hospital. «Tive uma equipa espectacular», recorda. Desses meses de choque lembra com especial carinho o enfermeiro António Barros, da equipa de reabilitação, que nunca a deixou desistir. «Foi o meu verdadeiro psicólogo», conta. Seguiram-se três meses no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, onde aprendeu tudo o que precisava saber para a nova existência na cadeira de rodas. Chorou muitas lágrimas à noite, sem ninguém ver, porque «não queria dar parte de fraca». O orgulho ajudou-a a seguir em frente. Quis mostrar que tinha força para superar e tinha a certeza de ​que não queria ficar dependente «nem da família nem de ninguém». Traçar as metas para alcançar a autonomia e independência ajudou-a a aceitar a deficiência. «Posso estar numa cadeira de rodas e ser feliz e útil à sociedade, às pessoas que me rodeiam», convenceu-se. 


Adora o convívio com os idosos e a eles quer dedicar a tese de doutoramento

Um ano após regressar aos Açores decidiu, contra a vontade dos pais, estudar no continente, em Faro. Fez a licenciatura em Ciências da Educação e da Formação, e depois em Psicologia. Hoje frequenta o mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde. Esteve dois anos sem conseguir arranjar trabalho, foi o momento em que mais sentiu a discriminação por estar numa cadeira de rodas. «Em todas as entrevistas a resposta era a mesma: não temos acessibilidades para si», conta. Em sentido contrário, o namorado já a conheceu na cadeira de rodas e aceitou-a sem reservas. Vivem juntos há quatro anos. «Nunca teve vergonha de andar comigo na rua, ou de me dar um beijo ou um abraço em público». Por vezes, nem se lembra que a cadeira existe. «Entramos ambos no carro e ele esquece-se de desmontar a cadeira», ri-se. Com ele, Débora reaprendeu a sexualidade e ultrapassou a vergonha das cicatrizes por todo o corpo, em nome das quais passou cinco anos sem ir à praia. 


A vontade de autonomia dá-lhe ganas: Débora consegue fazer tudo sozinha

A vontade de autonomia dá-lhe ganas e Débora quase não tem tempo para respirar. Gosta de trabalhar e adora o convívio com os idosos. Ao trabalho a tempo inteiro junta o estudo à noite. Às vezes põe o despertador para as quatro da manhã e estuda um bocado antes de ir trabalhar. Em casa consegue fazer tudo sozinha, da higiene pessoal à culinária e à limpeza doméstica. Só não passa a ferro, porque nunca recuperou a força no braço direito. Inventa estratégias para driblar as dificuldades: um pau de vassoura com um gancho é a solução para tirar os cabides do armário e estender a roupa. «Se não vai de uma maneira, vai de outra», repete. 

Longe vão os dias em que era uma «menina mimada, daquelas mesmo fúteis», que contava com os avós para a proteger e a mãe para resolver qualquer asneira que fizesse. Agora não verga. Não se queixa dos problemas na bexiga que a obrigam a usar uma sonda para urinar, da medicação crónica para os problemas sanguíneos, consequência de uma trombose venosa profunda na perna direita, das restrições alimentares derivadas dos problemas no intestino, das dores neuropáticas constantes, de uma sensação de ardor nas pernas, pés e nádegas, às vezes quase insuportáveis. «Tento abstrair-me, concentro-me no que tenho de fazer e vá, siga!», adianta. 


Todos a conhecem no café onde costuma almoçar. Ela fala jovialmente com toda a gente

Desde que está numa cadeira de rodas tornou-se uma pessoa melhor, tem a certeza disso. «Mais humanista e generosa, com mais compaixão, menos focada nos fins e nos bens materiais», detalha. Aprendeu a apreciar as pequenas coisas da vida, um «obrigado» ou um obstáculo ultrapassado enchem-na de satisfação. Não se considera corajosa, mas sente orgulho em saber que, um dia, será ela a cuidar dos pais e não o contrário. Antes disso, conta cuidar dos próprios filhos. Quer casar e ter filhos, apesar do receio das represálias que possam sofrer por ter uma mãe em cadeira de rodas. «Para o meu filho vai ser normal, mas é difícil desconstruir o estigma da sociedade». Não é o medo que a vai travar. Se tudo correr bem, a criança nascerá na vivenda que planeia construir na serra de Loulé. Débora vai deliciar-se a tratar da horta, há-de ter o seu consultório de psicologia. Daqui a uns anos, iniciará um doutoramento sobre a população idosa. Sonhos não lhe faltam, nem determinação, não há-de ser uma cadeira a amarrá-la à terra.

 


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