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23 maio 2018
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Doce mel, doce Pinhel

​​​​​Pinhel sempre teve um papel importante na defesa do território nacional. 

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Quem conhece as Beiras guarda na memória os campos brancos de giestas, na Primavera, e o frio cortante, no Inverno. Os amplos espaços bravios salpicados de granito, pedras enormes que por vezes dão forma às casas. As mesas fartas e a genuína hospitalidade beirã, aquilo que a farmacêutica Ana Sofia Lopes mais aprecia na terra onde nasceu, Pinhel.

A visita começa em Cidadelhe, a que José Saramago chamou “calcanhar do mundo”, no livro “Viagem a Portugal”. A aldeia é a entrada sul do Vale do Côa e faz parte do Património Mundial classificado pela UNESCO, graças a um conjunto de gravuras e pinturas rupestres encontradas no Vale do Côa. Para visitá-las é preciso esperar o fim do Verão, quando o leito do rio está seco, e enfrentar o percurso acidentado, entre as pedras. «Mas vale a pena», garante a proprietária e directora-técnica da Farmácia Santos. Além dos vestígios paleolíticos, a aldeia conserva sinais do período pré-romano e ainda são visíveis as ruínas do Castelo dos Mouros.


A aldeia de Cidadelhe faz parte do Património Mundial classificado pela UNESCO

Cidadelhe enquadra-se numa paisagem natural mantida em estado quase puro. No céu sobrevoam abutres necrófagos, que nidificam nos penhascos circundantes, junto ao rio. Nos campos em redor passeiam-se garranos selvagens.

À medida que descemos do ‘povo de cima’ para o ‘povo de baixo’, a zona mais antiga da aldeia, sucedem-se pequenas casas de granito, a condizer com os muros que ladeiam a estrada. Gatos dormitam nos telhados, observados por cães atentos. O cacarejar das galinhas e os chocalhos das ovelhas são interrompidos pelo som amplificado do sino da Igreja Matriz, «mandada construir por um cidadão de grandes posses, após 1640, talvez como forma de agradecimento pela restauração da independência de Portugal», explica Ricardo Capelo, historiador do município de Pinhel.

No cimo do campanário vê-se esculpido ‘o cidadão’, simbolizando o cidadão livre que podia escolher a quem pagar os seus impostos. Cidadelhe era uma das dez beetrias, ou povoações, do reino. Os seus habitantes podiam escolher para senhor quem entendessem, tinham livre jurisdição administrativa e estavam isentos de alguns impostos à coroa. Vantagens ditadas pelo isolamento geográfico.​​


​O 'cidadão', esculpido à esquerda,​ simboliza o cidadão livre

Outra das riquezas de Cidadelhe é o seu pálio, um manto com perto de 300 anos, que é exibido nas procissões mais importantes. Conscientes do seu valor, os naturais da aldeia criaram uma estratégia engenhosa para prevenir eventuais furtos. O manto sagrado é guardado nas próprias casas dos aldeões. Em segredo, vai sendo mudado de casa em casa, para que o seu paradeiro permaneça incerto. Agora está em construção um edifício para albergar e expor o pálio.

Actualmente vivem de forma permanente em Cidadelhe 25 pessoas. Há 30 anos que não nasce ali uma criança. Os poucos habitantes idosos com quem nos cruzamos cumprimentam e metem conversa. Uma senhora confirma que Saramago visitou Cidadelhe duas ou três vezes, outra mete-se com Ricardo Capelo: «o senhor diz que Cidadelhe é bonita e eu digo que é feia, está tudo a cair». Já não é verdade: as casas têm vindo a ser ecuperadas para turismo e até já existe um hostel. «Os habitantes sabem que o presente e o futuro de Cidadelhe passam muito pelo turismo, aproveitando o reconhecimento como património mundial», diz o historiador.

O turismo está a crescer na região, complementando as actividades económicas tradicionais, como a agricultura, a extracção de granito ou o artesanato. «Pinhel tem recebido muito turismo, graças aos eventos que cá se realizam e já começa a ter uma certa notoriedade», confirma Ana Sofia Lopes. Um exemplo de agro-turismo é a Quinta das Pias, decorada com mais de cem pias e mós de moinhos e dois lagares de azeite.

Outro empreendimento preferido de quem visita Pinhel é o Encostas do Côa, localizado numa aldeia próxima. Uma casa na árvore, que funciona como alojamento, a seis metros de altura, é a maior atracção deste turismo rural de origem familiar. «Quando era garoto e ia com os animais para o campo, com os outros garotos da aldeia, subíamos para as árvores para conversarmos. Era o nosso ninho em cima da árvore. Uma casa na árvore é um sonho para toda a gente», justifica um dos donos, José Fernandes.

A família que gere o Encostas do Côa é ainda proprietária de um negócio de apicultura. O mel é um dos produtos típicos de Pinhel, a par do vinho, das amêndoas e do azeite. ​José Fernandes conduz o velho jipe pelos caminhos enlameados para mostrar uma das produções apícolas que a família tem na região. É um negócio com 80 anos que nasceu quando o sogro, então menino de seis ou sete anos, «encontrou um enxame e conseguiu construir um cortiço e tirar de lá os primeiros favos de mel». Hoje a produção anual supera as 20 toneladas, comercializada com a marca Mel do Abel, em honra do sogro.



«O mel é um medicamento natural, para além de alimento. O mel é doce, é bom, é curandeiro». José Fernandes fala com orgulho deste negócio em que toda a família participa e que, para além do lucro familiar, contribui para gerar riqueza para o território de Pinhel e o país. «Contribuímos para o funcionamento do ecossistema, pois as abelhas são fundamentais para a sobrevivência humana».

O azeite é outro dos produtos típicos destas terras de extensos olivais. Carlos Videira é o actual proprietário de um lagar ribeirinho, que pertencia ao sogro. A produção é ambientalmente ecológica, pois a separação é feita de forma natural, com o azeite produzido a frio e não filtrado. «Tenho a fileira completa do azeite, desde o olival de produção biológica certificada, ao lagar, também certificado, para produzir azeite biológico, e à comercialização. Mais de metade da minha vida está naquele lagar», diz envaidecido. A produção de 12 toneladas por ano é escoada para o mercado nacional, mas também para países como França, Espanha ou Suíça. Uma das três marcas que produz, a Diamante do Côa, já foi premiada em Portugal e no estrangeiro.

Na zona histórica de Pinhel, a praça principal exibe um pelourinho de gaiola do século XVI. Pinhel sempre teve um importante papel na defesa do território nacional, pela sua localização estratégica, numa zona elevada ladeada pelo rio Côa. Até ao final do século XIII, o rio marcava a fronteira com Espanha. As terras de Ribacôa, incluindo Figueira, Sabugal, Almeida, até Vilar Formoso, só foram integradas em Portugal em 1297, quando D. Dinis assinou o Tratado de Alcanizes com o rei de Leão e Castela. Como diz Ana Sofia Lopes, «Pinhel era a praça-forte mais avançada do reino de Portugal. Do castelo ainda restam duas torres, parte da muralha e algumas das portas».


Até 1297, o rio Côa marcava a fronteira com Espanha

A torre de menagem apresenta um curioso pormenor: num dos lados destaca-se uma esplêndida janela manuelina, decorada por um elefante e um leão, símbolos dos Descobrimentos. Do outro lado, virado para Espanha, na altura Leão e Castela, a torre é enfeitada por duas gárgulas em forma de rabo, um símbolo muito ofensivo na Idade Média. As gárgulas medievais, muito comuns em catedrais, são escoadouros das águas pluviais salientes nos telhados, muitas vezes ornadas com figuras monstruosas, humanas, ou animalescas.

A importância estratégica e militar de Pinhel era tão grande que, na Idade Média, a cidade chegou a produzir material bélico e ainda hoje há uma ‘Rua dos Tiros’.

Cidade antiga, Pinhel é um poço de história. Durante pouco mais de um século, foi sede de diocese, o que justificou o título de cidade, em 1770. A decisão terá sido impulsionada pelo Marquês de Pombal, com o propósito de retirar poder aos bispos de Viseu e de Lamego, mas a aventura terminou em 1882, devido à difícil relação de poder entre o bispo e o município e, sobretudo, à falta de sustentabilidade económica.

A cidade, e toda a região, foi porto de abrigo para muitos judeus expulsos pelo reino de Espanha, nos tempos de Isabel, a Católica, e de D. Manuel I, de Portugal.

Pinhel intitula-se ‘Cidade Falcão’, animal que assume uma posição de vigia no brasão da cidade. «Na época do Mestre de Avis, os pinhelenses lutaram contra os espanhóis e roubaram-lhes o porta-estandarte onde estava desenhado o falcão», conta a farmacêutica. O episódio vai ser recriado na principal festa da cidade, a Feira Medieval, que veste a rigor o centro histórico no primeiro fim-de-semana de Junho. O presidente da câmara municipal e a mulher vestem-se de rei e rainha, e a população adere em massa à festa, que traz muitos turistas à cidade, sobretudo espanhóis.

Outra grande festa é a Feira das Tradições. Começou por ser uma mostra de produtos locais, como tamancos, teares, mel ou vinho, e hoje «é um dos maiores eventos da Beira Interior». Ana Sofia Lopes desfia outras festas que alegram Pinhel ao longo do ano e detém-se no detalhe dos cantares que ocorrem em várias aldeias do concelho, como o Lamegal, por altura da Páscoa. «É o encomendar das almas e as alvíssaras, que juntam à noite a população, num momento de convívio que não deixa esquecer a tradição».

Terminamos a visita no moderno museu municipal, localizado na Casa da Cultura, que sintetiza a história da região, das raízes paleolíticas aos nossos dias. Surpreende pela linguagem museológica inovadora, uma proposta da DepA Architects, cujo arquitecto Mário Rui Sobral é natural de Pinhel. O mesmo gabinete assinou a reabilitação da antiga casa onde funciona o bar-restaurante Entre Portas, na zona nobre da cidade. A modernidade do espaço, em simbiose com as paredes de pedra e vigas de madeira originais funciona como um espelho da gastronomia que oferece: um novo olhar sobre a melhor gastronomia beirã.

Partimos com uma doce sensação.​


Bacinete, ou elmo, talvez único no mundo, exposto no museu municipal
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