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4 maio 2018
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«Devemos ser capazes de rir de nós próprios»

​​​​​​​​​​​​O General tem um sentido de humor apurado. Que os netos desafiam, para encanto do avô.

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​REVISTA SAÚDA - Tem uma imagem de um homem sério, sisudo.
RAMALHO EANES - Rio-me pouco, não é? Não rir, ou rir pouco, foi imagem que se me 'colou', em resultado da minha mais frequente presença na televisão e nas fotografias nos jornais. Presença essa que ocorreu quase sempre em circunstâncias difíceis, depois do 25 de Novembro, enquanto eu desempenhava as funções de Chefe do Estado-Maior do Exército e, depois, quando iniciei as funções de Presidente da República. Não sei se sabe que essa imagem me mereceu mesmo algumas anedotas. Numa delas, alguém perguntava: «O que é que sai quando o Eanes lava a gilete?». A resposta óbvia seria algo como espuma ou assim. Mas era: serradura. E isto porque o Eanes tinha cara de pau! Uma vez, o meu filho mais velho, ainda com pouca idade, respondeu lapidarmente a um jornalista que lhe perguntou: «Oh Manel, o teu pai nunca se ri?». E o Manuel respondeu: «Não, ri-se. Nunca se ri é nas cerimónias oficiais porque aí não se conta anedotas».

Ouvi relatos de amigos seus que o descrevem como um homem francamente bem-humorado. O humor ajuda a viver?
O humor ajuda sempre, sobretudo se formos capazes de nos rirmos de nós próprios. Isso é muito importante, porque o indivíduo só se consegue rir de si quando se consegue distanciar de si, olhar-se nas suas fraquezas, nos seus erros. Miguel Torga, com quem tinha uma grande amizade, aconselhava-me a nunca deixar de me rir de mim. Obviamente, o indivíduo ri-se de si pelas figuras tristes que faz, pelos erros que comete, muitas vezes, mas também pela preocupação que tem em estar com os outros de uma maneira desinibida, que pode não parecer afectiva, mas que o é intrinsecamente. 



É verdade que conseguia descomprimir ambientes tensos e formais precisamente com o humor?
Sim, foi um instrumento útil.

Os netos são uma paixão?
Os netos são uma paixão, é verdade. Conto, muitas vezes, as mesmas histórias deles. Ao princípio, estava convencido de que as contava para as pessoas ouvirem. Cheguei à conclusão de que conto as histórias para eu as ouvir outra vez. Tenho aí as fotografias deles e quando, às vezes, vinham cá amigos e não me perguntavam por eles, eu apontava para essas fotos e sentia-me aborrecido quando não acrescentavam «que bonitos»… [risos] que eram os meus netos.

A sério, ficava sentido?
Não, apenas estupidamente magoado. Os netos são óptimos, bonitos, para todos os avós. Os avós são assim... 

Os netos fazem o que querem dos avós?
Isso não sei, mas desafiam-nos. O meu neto António, aos dois anos e tal, achava-me «um grande chefe». Quando estava próximo dos quatro anos, disse-me: «Avô, eu tenho quase quatro anos». E eu respondi, na brincadeira: «Não, tu vais fazer três, não é quatro». Ele olhou para mim, com mágoa e algum desdém, e disse: «Tu nem sequer sabes contar». [risos] Como se isso não bastasse, quando fez sete anos, almoçávamos em casa dos pais, e ele aproveitou um
momento de silêncio e disse: «Ó avô, tu sabes que eu sou mais esperto, muito mais esperto do que tu?». E agora, que estou a envelhecer, quando eu me meto com ele, com alguma provocação, ele responde: «Tu estás cada vez mais velho…!».

É aquele avô que acompanha os netos?
Infelizmente não, porque não tenho tido capacidade para dizer não quando o devia fazer, e, assim, mantenho muitos afazeres. Com o António e a Madalena, que moram em Lisboa, estou praticamente só aos domingos; com a Joana, que mora no Porto, estou ainda menos tempo, excepção feita às férias, em que estamos todos os dias juntos. 

Esta sua vontade de continuar intensamente activo numa idade em que a maioria das pessoas já só se dedica a actividades de lazer é por gostar do que faz?
Não se trata nem de uma qualidade nem de um defeito. Mantenho-me activo, em primeiro lugar, para não 'enferrujar', socorrendo-me de uma expressão de Azeredo Perdigão. Já teria a idade que tenho hoje e ainda trabalhava na Gulbenkian, das oito da manhã às tantas da noite. A dr.ª Madalena, sua mulher, deu conta à minha mulher desta situação e da preocupação que sentia. Resolvi falar com ele e sugerir-lhe que alterasse o ritmo de trabalho. Encontrei-me com ele e ter-lhe-ei dito mais ou menos o seguinte: «Senhor presidente, acho muito bem que continue a dedicar à Fundação Gulbenkian o seu tempo e esforços, até porque o senhor, além de ser o seu símbolo, é o garante da imagem, unidade e eficácia como catedral da cultura». Ouviu-me com a sua elegância habitual e disse-me mais ou menos isto: «Vou responder-lhe como me respondeu o meu amigo Rockefeller, quando estive com ele, em conversa semelhante à que o senhor general está a ter comigo, e que foi: «Vou continuar, porque mais vale rebentar que enferrujar.». Como sabe, o ser humano cedo começa a perder neurónios. Na minha idade ter-se-ão perdido milhares, já.  Uma ginástica mental cuidada ajudará a manter a capacidade cognitiva, talvez porque as sinapses que estariam desmobilizadas sejam chamadas a actuar. Tal como se faz ginástica para manter o corpo são, também se deve fazer 'ginástica' para manter a mente sã.

A actividade física foi sempre importante na sua vida?
Sim, sem dúvida. A carreira militar impunha uma actividade física exigente mas equilibrada, virtuosa, poderia dizer-se. E assim em tempo de paz. Porque, em tempo de guerra, a vida militar exige uma actividade física exagerada, exaustiva, que nada tem de virtuosa. Em operações militares, em especial as de muitos dias, carrega-se muitos quilos às costas. Carrega-se ainda a água, a arma, as munições... Enfim, a actividade física em tempo de paz é, e era, muito boa. Em situação de guerra era extremamente desgastante.

Os cães são uma paixão desde pequeno

Manteve esse cuidado com um estilo de vida saudável. Não é frequente encontrar alguém da sua idade em tão excelente forma, ao que se sabe.
Plagiando um amigo meu: «Ao nível de chassis e carroçaria, estou apresentável; quanto ao motor, estou uma desgraça.».

O que é a felicidade para si?
A felicidade por que todos almejamos, como sabe, não existe. Marguerite Yourcenar diz, e eu estou a evocá-la porque concordo, que não pode haver felicidade quando há uma ameaça inevitável e incompreensível, que é a morte. A finitude foi sempre uma questão de grande incompreensão humana. Aliás, o grande sucesso das religiões é prometer a eternidade, dizer que a morte enquanto fim último não existe. Não há felicidade porque a finitude está permanentemente a mostrar-se, através da morte dos nossos pais, dos nossos irmãos, dos nossos amigos. E é esta presença constante, que nós tentamos esquecer, mas que não conseguimos esquecer, que faz com que a vida seja uma passagem breve, que não seja um tempo de repouso, e que não haja felicidade, embora haja momentos de felicidade.

Tem a 'sua' farmácia?
Tinha, mas agora vamos à farmácia do nosso filho.

Tem direito a entregas ao domicílio?
Não tenho entrega nenhuma. Creio que o meu filho e os parceiros com quem ele trabalha não nos reconhecem esse direito! Depois desta nossa conversa, vou pensar se não será bom eu reivindicar a fruição desse cómodo procedimento…


«Não se vive com dignidade sem dinhe​​iro para os medicamentos»

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É um dos embaixadores da Associação Dignitude, promotora do Programa Abem, que visa garantir a todos o acesso aos medicamentos, em iguais condições de segurança e discrição. O que o levou a aderir ao projecto?
Temos de fazer o que é possível para que todos vivam com dignidade. E não se vive com dignidade se não se tiver dinheiro para comprar medicamentos. Não se vive com dignidade se não se tiver dinheiro para pôr os filhos na escola, para ter uma casa com o mínimo de condições. Não se vive com dignidade se não se tiver confiança no presente e esperança no futuro. Por isso, o trabalho da Associação Dignitude é extremamente importante e inspirador. Eu não podia deixar de colaborar com a Associação Dignitude, até porque tenho sistematicamente defendido a sociedade civil e chamado a atenção para o que é a sua responsabilidade, ao mesmo tempo social e política. Uma sociedade só é dinâmica e só tem capacidade de bem realizar o bem comum, de virtuosa modernização económica e justo desenvolvimento social, para um bom futuro, se a sociedade civil também estiver organizada e dispuser de um conjunto de organizações autónomas perante o Estado, que com ele colaboram, mas que também o controlam, exigem e reivindicam, mesmo.

Saiba mais em abem.dignitude.org.
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