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3 abril 2025
Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Descobrir-se como pessoa autista

​​​Raquel Lebre sempre se sentiu diferente dos outros, mas não sabia porquê.
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​Aos 30 anos, Raquel Tavares Lebre descobriu que era autista. Esse momento foi um marco, o de «maior felicidade» da sua vida. Foi quando finalmente sentiu «OK, agora sei, agora tenho um nome».

O autismo é uma condição do neurodesenvolvimento, o que significa que, devido a fatores genéticos e/ou ambientais, as pessoas autistas processam informação de forma diferente das pessoas não autistas. E o que significa estar no espectro do autismo? Cofundadora da Associação Portuguesa Voz do Autista, Raquel dá a resposta: «Imagine-se um círculo dividido em 12 partes iguais. Cada parte tem uma cor que representa uma característica do autismo», que pode ser estereotipias (movimentos repetitivos), regulação emocional, socialização, hiperfocos (interesses muito intensos por determinados temas), comunicação não verbal, sensibilidades sensoriais, entre outras. «Cada pessoa autista tem todas essas características, mas em percentagens diferentes», o que significa que cada pessoa no espectro tem a sua própria identidade e necessidades específicas.


Descobrir que é autista foi um marco no entendimento da vida de Raquel

Por exemplo, todas têm sensibilidades sensoriais, mas estas podem manifestar-se de diferentes formas. «Eu tenho bastante sensibilidade visual, como por exemplo a luzes muito fortes, mas outras pessoas autistas podem ter hiper ou hipossensibilidade auditiva», refere. Ou pode haver pessoas que preferem comunicar de forma escrita, podem até ser não falantes, mas expressar-se de variadíssimas formas. De igual modo, há pessoas que gostam muito de interação social e outras que preferem isolar-se mais, entre inúmeras outras possibilidades.

Tal como aconteceu com Raquel, muitas mulheres ainda enfrentam dificuldades para obter um diagnóstico. «O autismo sempre foi estudado e diagnosticado com base no estereótipo homem/menino branco, o que ainda faz com que muitas mulheres tenham diagnósticos tardios, sejam subdiagnosticadas ou até sejam erradamente diagnosticadas com outros diagnósticos, devido aos padrões normativos da sociedade e ao enviesamento das investigações». E dá um exemplo: «Se uma menina autista for mais calada, isso é quase considerado expectável, mas o que se espera de um menino é que seja mais energético, mais dinâmico».

Desde pequena, Raquel era muito tímida e sentia-se diferente. Uma das suas primeiras memórias de infância, e que é semelhante entre outras «sentir-se um "ET"», sem perceber «como se é ou como se deve ser enquanto ser humano». Observava as pessoas neurotípicas e não se revia no seu comportamento, mesmo em situações consideradas de senso comum. «Pelo contrário», explica, «nós questionamos muito, temos dinâmicas diferentes e achamos que certas normas sociais não fazem sentido». Ao mesmo tempo, tinha a perceção, já nítida em criança, de que a reação das outras pessoas aos comportamentos de Raquel também era de estranheza, o que lhe gerava uma série de dúvidas: «Porque é que não devia ter dito isto? Porque é que não estou a entender esta dinâmica social? Há alguma coisa errada que eu não estou a perceber?».


Ao longo dos anos, de forma inconsciente, foi mascarando características autistas

Ao longo do tempo, tal como muitas pessoas autistas, aprendeu a mascarar ou minimizar as suas características (um processo conhecido por masking1). «Não fazemos isso de maneira intencional, pode até ser um processo inconsciente», diz, porque «queremos, obviamente, ser integrados na sociedade. Queremos ter o nosso grupo de amigos. Acho que ninguém quer ser renegado, não é?». Este é um comportamento do qual resultam consequências graves, pois a manutenção prolongada do masking «pode levar a uma imensa falta de identidade e uma grande exaustão», que «acaba por causar complicações sérias de saúde mental, como depressão, ansiedade e mesmo suicídio». Aliás, Raquel alerta para a taxa de suicídio em pessoas autistas, «que é muito superior à taxa pessoas não autistas», e em que, no caso das crianças, «um estudo indica que o risco existente é 29% superior ao das crianças não autistas».

Depois do diagnóstico e consciente do masking, Raquel dá um exemplo em que o seu processa- mento é diferente do das pessoas neurotípicas: as conversas de circunstância, «falar por falar em contextos sociais ou sobre o clima. Quando me perguntam “tudo bem?”», conta, «há tantos fatores que posso considerar para conseguir responder a essa pergunta: na minha vida, a nível social, mesmo a nível sensorial – como uma luz que está mui- to forte e me impede de escutar, ou algum cheiro ou algum ruído perturbadores». Pelo contrário, as pessoas não autistas «devem responder que está “tudo bem”, sem sequer pensar». Esta dificuldade quer dizer que não se quer relacionar ou não gosta das pessoas? «Nada disso», esclarece.


Por falta de compreensão, as pessoas autistas por vezes são consideradas rudes ou antipáticas​

Na verdade, esta forma diferente de processar informação, e a falta de divulgação e compreensão para as necessidades de pessoas autistas, levam a que sejam mal interpretadas, «muitas vezes consideradas rudes, antipáticas ou até antissociais. E isso não é verdade!». Pelo lado das pessoas autistas, estas diferenças de comunicação podem gerar dúvidas, crises de autoconfiança ou sentimentos de autocrítica, com o risco de culminar num «maior isolamento social». Hoje, Raquel já não se culpa por ser como é. «O meu pensamento passou a ser “OK, estou aqui”, há muita coisa na sociedade que não faz sentido para mim, mas está tudo bem (comigo, eu não estou “errada”), somos todos diferentes e se calhar há coisas que realmente não fazem sentido no mundo em geral», comenta a rir.

Foi precisamente para criar uma “plataforma” para que todas as pessoas autistas possam ser incluídas e ouvidas, bem como as suas necessidades, que nasceu a Associação Portuguesa Voz do Autista. Dá o seu exemplo de pessoa considerada «autista funcional» (termo que não gosta de usar) porque trabalha e vive com o seu companheiro. «Mas isso não significa que não necessite de suporte na minha vida, porque há muita coisa em que, de uma perspetiva da sociedade, não sou de todo funcional». Por exemplo: apesar da sua capacidade intelectual, e de ter um mestrado, sem suporte adequado não consegue manter um emprego. «Vou estar em constante esforço e torna-se impossível». Pelo contrário, se tiver as acomodações necessárias, como a possibilidade de trabalhar em casa, a sua produtividade e bem-estar aumentam significativamente, ainda para mais porque mais recentemente «teve a sorte» de os seus hiperfocos se terem tornado na sua carreira profissional.

1 Masking no autismo: esforço consciente ou inconsciente para esconder ou minimizar características autistas, como diferenças de socialização, sensibilidades sensoriais e formas naturais de comunicação. Pode incluir imitar expressões faciais e tom de voz, forçar contacto visual, suprimir hiperfocos e ensaiar respostas sociais para parecer "típico". Geralmente, ocorre devido à pressão social para se encaixar e evitar discriminação ou exclusão. Pode ser extremamente exaustivo e levar a burnout autista, ansiedade e perda de identidade.​
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