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8 fevereiro 2021
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Pedro Loureiro; José Pedro Tomaz; Eduardo Martins Fotografia de Pedro Loureiro; José Pedro Tomaz; Eduardo Martins

Crise-19

​Farmácias dos centros históricos quase vazias.​

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O Porto não é dado a terramotos, mas a pandemia teve quase o mesmo efeito económico. «De um momento para o outro, caiu a pique», retrata o arquitecto Mário Mesquita. Os belos edifícios do centro histórico resistiram, mas o coronavírus engoliu aquele mar de gente que bebia copos, comprava de tudo e trocava línguas e sotaques noite fora. Ficaram os sobreviventes. «Antes, parecia o São João todos os dias. Agora, tenho dias com uma dúzia de clientes», descreve o administrador da Farmácia dos Clérigos.


«Antes, parecia o São João todos os dias. Agora, tenho dias com uma dúzia de clientes», lamenta Mário Mesquita, administrador da Farmácia dos Clérigos

O que caiu a pique foi a procura. Se alguém não acredita, Mário tira as provas do bolso e mostra-as no ecrã do telemóvel. As estatísticas do Sifarma.Gest, programa informático de apoio à gestão das farmácias, contabilizam 933 atendimentos na Farmácia dos Clérigos durante todo o mês de Abril de 2020. Uma média de 35 clientes por dia, considerando que fecha aos domingos para descanso do pessoal. Em 2019, no mesmo mês, fez 4.080 atendimentos ao balcão. A COVID-19 matou três quartos da actividade.

Quanto tempo sobrevive a baixa do Porto sem turistas? Fizemos a pergunta ao presidente da Câmara. «Não sobrevive muito tempo. Ela depois renascerá, a verdade é que as cidades são muito resilientes. Mas as actividades que as cidades têm não são resilientes. Se esta situação se prolongar no tempo, prevejo que haja um colapso muito significativo na actividade da baixa», respondeu Rui Moreira.


Na última década, a facturação da Farmácia Vitália caiu para metade, com redução de seis postos de trabalho

Parece incrível, mas a pandemia também pode matar serviços de saúde. A Farmácia Vitália, instalada no belo Palácio das Cardosas, um edifício histórico, pertence a um grupo de risco: faz 88 anos no dia 4 de Fevereiro de 2021.

«Ultimamente, os turistas eram muito importantes para nós. Sem eles, não sei como vai ser», desabafa o director-técnico, genuinamente apreensivo. Ele e outro sócio, também farmacêutico, foram dos primeiros a apanhar COVID-19. No dia 12 de Março, a Vitália fechou as portas em sobressalto, com três casos de infecção entre os colaboradores. «Apanhámos um susto, mas felizmente estamos todos bem», recorda Armindo Cosme.

A farmácia esteve encerrada 13 dias para toda a equipa cumprir quarentena profiláctica, de acordo com as instruções dos médicos de Saúde Pública. Duas semanas sem facturar um cêntimo foram mais uma parcela de prejuízo. A crise já se arrasta há demasiado tempo.  Na última década, com as medidas de austeridade e o êxodo de muita população residente, a facturação da Vitália caiu para metade. Em 2009, a porta não fechava, pontualmente às 21 horas, sem antes 500 pessoas, pelo menos, terem saído servidas. Em 2020, ficou nos 150 atendimentos por dia. A equipa tinha 15 pessoas, agora tem nove. A pequena empresa não consegue conservar os postos de trabalho.


«Os residentes estão a ser comidos», descreve o farmacêutico Armindo Cosme. A farmácia de que é sócio pode ser a próxima vítima

A aproximação do final da moratória para a livre actualização das rendas das lojas históricas é uma espada de Dâmocles, de lâmina afiada e presa por um fio. «Os residentes estão a ser comidos», descreve Armindo Cosme, que teme vir a ser a próxima vítima da especulação imobiliária. Centenas e centenas de casas de família passaram para o alojamento local, mas não foi apenas isso. Também fecharam agências bancárias, clínicas médicas, pequenos e grandes comércios. A fábrica dos chocolates Arcádia foi para Gaia e levou com ela os operários. A Santa Casa da Misericórdia mudou-se para a Boavista. À medida que foi caindo o receituário, os produtos de saúde e bem-estar, com IVA a 23 por cento, ganharam um peso maior na facturação. «Os turistas foram uma almofada de segurança para nós, mas alguém sabe quando voltam?», preocupa-se o director-técnico.

«As pessoas começam a sentir que estão a mais, porque não há movimento», alerta João Almeida, preocupado com o desgaste emocional da sua equipa

A Farmácia Moreno era uma romaria de turistas. Agora, passa muitas horas vazia

No mesmo quilómetro de baixa, no Largo de São Domingos, as traduções “Pharmacie”, “Pharmacy” e “Apotheke” legendam a portuguesíssima “Farmácia” na bela fachada de ferro, que era fotografada cem vezes ao dia. Fundada em 1804, a Farmácia Moreno, com um museu lá dentro, rivalizava com a Livraria Lello. «Tudo o que era turista passava por aqui», relata o farmacêutico proprietário, com ar nostálgico. Os sete farmacêuticos e a ajudante técnica falavam inglês, francês, castelhano e «português de vez em quando». Hoje disputam avidamente cada cliente, porque passam mais tempo de braços cruzados. «As pessoas começam a sentir que estão a mais, porque não há movimento», alerta João Almeida. Apreensivo com «o desgaste emocional que a pandemia trouxe à equipa», resolveu desenvolver a loja online. «Quase não deu negócio, mas serviu para manter as pessoas entusiasmadas num novo projecto», explica.​

A ameaça económica traz muita gente tensa, cheia de medo do futuro. Como a doença, a crise é uma fonte de dramas. A Farmácia Brito, um dos estabelecimentos comerciais mais antigos da grande Avenida da Liberdade de Braga, tem sido palco de alguns. Na primeira vaga da pandemia, a crise económica impôs a dispensa de uma farmacêutica. Uma oportunidade de emprego na indústria farmacêutica levou à saída de outra. Até ver, a equipa está reduzida a cinco pessoas. «Este regresso ao confinamento é muito grave, posso ter mais postos de trabalho em risco», declara a farmacêutica proprietária. «Não dá para termos colaboradores medianos, todos têm de ter grande dedicação e sacrifício, caso contrário é o fim de linha», alerta Ana Gomes.

Em Dezembro, um técnico de farmácia ficou infectado. Foi toda a gente para casa, de quarentena, à excepção dela e do outro farmacêutico da equipa, ambos com testes negativos. «Foi a minha salvação, se não ia ter de fechar a farmácia», afirma a directora-técnica. O colega, de 47 anos, caiu-lhe do céu num pranto, ainda na primeira vaga da pandemia. «Entrou-me na farmácia desesperado, a pedir emprego. Dizia que trabalharia noites e feriados, estava disposto a tudo», recorda Ana Gomes. Foi uma decisão de risco, mas não podia estar mais satis- feita com a contratação.

Há muita gente a cair nas garras do desemprego. No Porto, fechou o mítico Majestic Café, até parece mentira. Em Braga, A Brasileira aguenta-se, sabe Deus como. No centro histórico, faliram muitas lojas, sobretudo de calçado e de vestuário. «Só daqui, vejo três que fecharam mesmo», lamenta Ana Gomes, à porta da farmácia. «Estamos num momento muito complicado. Tive de pedir um empréstimo para honrar os compromissos», confessa.


Desde Março, a facturação da farmácia de Braga foi sempre negativa, entre -26% e -63%

O senhorio é o pai, por isso facilita o pagamento das rendas. No centro das grandes cidades, moradores antigos já há muito poucos. Fundada em 1933, com uma grande porta ogival em cantaria, «a farmácia era atraente para os turistas, mas eles desapareceram de repente». De um dia para o outro, a pandemia rebentou com o negócio. De Março até ao final do ano, fez menos 12.901 atendimentos do que em 2019. Menos 32% de clientes, menos 32,4% de facturação. Dez meses no vermelho. Em Abril, soaram campainhas de alarme: o mês fechou com uma quebra de 63% na coluna das receitas. Como a margem média dos medicamentos comparticipados é de 17,5%, a mais baixa da Europa, a redução abrupta da actividade deixou de cobrir as despesas. «Só consigo pagar ordenados e impostos, pouco mais», conclui Ana Gomes.

As farmácias dos centros históricos das grandes cidades estão a viver um pesadelo. Em 2020, a facturação da Farmácia Moreno caiu 70% em Abril, 69% em Maio e 61% em Junho, face aos meses homólogos. O ano fechou com uma quebra global de 30% em relação a 2019. Todos os meses foram negativos, à excepção do primeiro trimestre. Antes da pandemia, o turismo continuava a subir em Portugal, mesmo no Inverno.

«Os primeiros dois meses do ano ajudaram a compensar as contas, mas estou a perder muito mais do que ganhei nessa altura», resume Mário Mesquita, administrador da Farmácia dos Clérigos. O Estado não aliviou os impostos: 45 mil euros de pagamento especial por conta, em três tranches. Não despediu, nem entrou em lay-off, graças ao investimento nos medicamentos manipulados. A Farmácia dos Clérigos produz cremes, pós secos, pomadas, soluções e xaropes para 250 farmácias de todo o país, do Minho ao Algarve. A mãe, farmacêutica, e o pai, técnico com registo de prática, estão reformados. O irmão e a irmã, ambos farmacêuticos, fazem parte da equipa de 22 pessoas. «Conseguimos manter esta gente toda graças aos laboratórios, caso contrário era uma desgraça», adverte o administrador.


Três farmacêuticas e um técnico de farmácia trabalham como loucos para manter a porta da Farmácia Príncipe Real aberta, no centro de Lisboa

No centro das grandes cidades também há pequenas farmácias de bairro, para as quais a quebra de facturação causada pela COVID-19 é ainda mais difícil de suportar. «Não sei quanto tempo vamos aguentar mais, desde que começou a pandemia estamos em queda», declara a farmacêutica proprietária da Farmácia Príncipe Real, bairro histórico de Lisboa. Em Abril de 2020, só fez metade dos atendimentos do mês homólogo: 1.400 contra os 3.000 de 2019. A facturação caiu 30%.


Em Lisboa, atrás dos turistas desapareceram os condutores de tuck tuck, o pessoal dos hotéis e das agências de viagens. Há dias em que a baixa parece uma cidade-fantasma​

O valor da venda média também se degradou. Com o êxodo dos turistas, quase desapareceu a dispensa de produtos de saúde e bem-estar. A Farmácia Normal, edifício histórico da Rua da Prata, em 2019 vendeu 1.000 protectores solares; em 2020, ficou-se pelos 200. «Desapareceram os turistas e também quem trabalha para   o turismo, dos condutores de tuck tuck, ao pessoal dos hotéis e das agências de viagens», descreve a directora-técnica e co-proprietária Catarina Fonseca. A esmaga​dora maioria dos antigos moradores foi corrida da baixa para os senhorios venderem os prédios a cadeias de hotéis ou investidores no alojamento local.

Por força do hábito, alguns ainda passavam pela farmácia da Rua da Prata quando iam às missas da Igreja de São Nicolau. Com a pandemia, deixaram de ir, têm medo de se meter nos transportes públicos. Uma clínica médica das imediações fechou as portas em Março. Reabriu em Julho, mas a "meio-gás". Menos clientes e menos receitas médicas resultaram num rombo permanente de facturação: -40% em Abril, -50% em Maio, -25% em Junho, -30% em Julho e Agosto, -20% em Setembro, -31% em Outubro, -28% em Novembro, -30% em Dezembro.


«Enquanto puder pagar as contas, não entro em lay-off nem despeço ninguém», afirma Catarina Fonseca, directora-técnica da Farmácia Normal, da Rua da Prata, Lisboa


«Passo muitos domingos ao balcão. Mas isto é o meu projecto de vida, não vou desistir dele agora», garante Glória Vilas Boas

E agora, que em vez de vacinas temos um recorde de infectados? «Não vão ser meses fáceis, não», declara Catarina Fonseca, às portas de um novo confinamento. A Farmácia Normal tem cinco colaboradores, a Farmácia Príncipe Real apenas quatro, incluindo as directoras-técnicas e proprietárias. Elas próprias dão o corpo e a alma para evitar cortes de salários ou tocar nos postos de trabalho. «Quando entrei era a mais nova, agora sou a mais velha. Enquanto puder pagar as contas, não entro em lay-off, nem despeço ninguém», afirma Catarina Fonseca. «Estou a dar horas que nunca pensei dar à farmácia, passo muitos domingos ao balcão. Mas isto é o meu projecto de vida, não vou desistir dele agora», garante Glória Vilas Boas. As duas mulheres sabem que um dia vão ajustar contas com o vírus. No gabinete de consultas farmacêuticas, vacinando as pessoas. Ou mesmo ao balcão de atendimento, porque há muitos farmacêuticos no mundo a trabalhar num medicamento para acabar com ele.

 

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