A sua vida está ligada, desde sempre, à Farmácia Portuguesa e Fernando Faria Paulino lembra-se bem de várias histórias que o demonstram. Uma aconteceu tinha ele seis anos. Brincava no Clube Naval quando cortou o queixo e a Farmácia Portuguesa foi o primeiro local de que se lembrou para procurar auxílio. «Foi o doutor Dionísio que me tratou e fez o penso».
Aos 61 anos, a relação de amizade mantém-se. O pai, médico amigo de José Dionísio, filho do fundador, trabalhava em Campanário, lugar mais isolado da Madeira, sem farmácia. Fernando lembra-se de o pai trazer as receitas e de o farmacêutico ir buscá-las à porta. Depois, os medicamentos seguiam para a outra freguesia da Madeira de autocarro. «Isto aconteceu há mais de 50 anos».
Apesar de morar no Caniço, a alguns quilómetros, quando precisa de medicamentos é a esta farmácia que recorre. Ele ou a mãe, de 94 anos. «Aqui já nos conhecem. Sinto muita confiança. Mesmo com isto dos genéricos, é fácil uma pessoa confundir-se. E aqui sabemos que estamos bem entregues». Trata uma das farmacêuticas, neta do fundador, Margarida Dionísio, por Guidinha. E abraçam-se. A amizade é evidente. «Manteve-se sempre ao longo dos anos», diz Fernando.
Situada na zona antiga do Funchal, a Farmácia Portuguesa vai comemorar o centenário no dia 11 de Novembro. São 100 anos de histórias que hoje parecem incríveis. Os medicamentos iam de autocarro para os postos da farmácia, distribuídos pela ilha quando não havia outra possibilidade: São Jorge, São Vicente, Ponta Delgada e Porto Moniz. E de barco, para o posto farmacêutico do Porto Santo. «Eram enviados à noite, três vezes por semana, e estavam lá de manhã», conta a directora-técnica da farmácia, Mafalda Rodrigues, de 56 anos, bisneta do fundador.
«O meu bisavô comprou o prédio todo e vivia em cima. Era o que se chamava qualidade de vida», recorda Mafalda, bem-disposta. Hoje, o prédio já não pertence à farmácia, mas no primeiro andar ainda funciona o museu, com frascos de medicamentos antigos, o balcão original e balanças. No laboratório, também ali, ainda se prepara alguns manipulados.
Quando José Dionísio morreu, o filho mais velho ficou com a direcção técnica do espaço, lugar depois assumido pela sobrinha Mafalda, que trabalhava, na altura, em Lisboa, num laboratório, de onde teve de «regressar mais cedo do que o previsto».
Uma prima da sua mãe, Margarida, bioquímica de formação, também aqui trabalha desde 1982. Mas estava na farmácia antes: aqui cresceu e nunca perdeu essa ligação. «Está entranhada», diz ela.
Antes da industrialização, o estabelecimento de saúde preparava os seus próprios medicamentos, muitos deles à base de plantas. «Tínhamos um índice de A a Z», conta a farmacêutica. Os manipulados mais populares da Farmácia Portuguesa eram indicados para doenças de pele e do estômago.
A Farmácia Portuguesa dispunha de uma destilaria, que fornecia água e esterilizações a uma clínica vizinha. «Tínhamos um alambique, que doámos à Câmara do Funchal, para exposição». Fazia-se também a esterilização dos lençóis, antes da lavagem. «Depois de um parto, por exemplo, eram lavados a altíssimas temperaturas», conta Margarida Dionísio, de 65 anos.
Farmácia-escola desde sempre, a Portuguesa é também uma farmácia de referência na Madeira. Era comum, conta Mafalda, os habitantes dos lugares mais longínquos, que apenas tinham posto farmacêutico, visitarem-na sempre que vinham ao Funchal. «No Natal, por exemplo, acontecia muitas vezes. E ainda acontece».
Há utentes fiéis desde crianças. Fazem parte da família e da rotina do estabelecimento. Vão levando os medicamentos e outros produtos de saúde de que precisam e só pagam depois, nalguns casos de seis em seis meses. São «os clientes de conta». O privilégio é reservado aos mais antigos, com décadas de relação honrada com a farmácia.
Isabel Tomé, 55 anos, amiga de escola da directora-técnica, vem aqui desde que se conhece. Os pais chegaram à Madeira em 1959 e «tornaram-se logo clientes». Continua a vir todas as semanas, levantar receitas para a mãe, que tem ao seu cuidado e é insuficiente cardíaca. José Sebastião Vieira, de 84 anos, é cliente desde 1956, ano em que começou a trabalhar como funcionário público nas redondezas. Também era amigo do avô da actual directora-técnica. «Venho buscar medicamentos para a minha mulher e pago apenas quando posso», conta. Orgulha-se de não «precisar muito» dos médicos e de resolver na farmácia a maioria dos seus problemas. Gosta da simpatia e da confiança. E sobretudo e toda a gente o reconhecer, quando franqueia a porta daquela casa centenária.