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30 setembro 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Vídeo de André Torrinha Vídeo de André Torrinha

Argentina livre

​​Ela libertou-se da rua, da doença e da violência doméstica.​

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​Argentina desfia o fio da vida sem preocupação  com o nexo ​cronológico. O puzzle da história pessoal preenche-se aos solavancos, alguns episódios tão vívidos que parecem desfilar à frente dos nossos olhos. A noite em que dormia com amigos na rua e a polícia cercou o local mandando-os a todos para um centro de acolhimento. O dia em que recebeu as chaves da sua casa e abriu a porta pela primeira vez. A sensação do AVC: «O sangue ferve, parece que tens lume, que te estão a queimar com fogo». Não adianta apressá-la no rumo da conversa.  

«Já estou a ir para lá», responde com calma desarmante. Passa num ápice da gargalhada por uma memória qualquer às lágrimas, quando se lembra que Cristiana, a psicóloga da associação CRESCER que a acompanha, pode desaparecer da sua vida. «Um dia que ela vá tem de deixar-me como deve ser, porque nós habituamo-nos às pessoas e é difícil perdê-las. Quero-lhe muito bem». Apressa-se a esclarecer que chora de alegria. «Estou bem, feliz, muito agradecida». Aos 59 anos, Argentina continua a trazer as emoções à flor da pele, apesar da vida dura que viveu.  

Quando tinha 15 anos, ainda em Moçambique, os pais combinaram-lhe o casamento. O futuro marido esperou-a até completar 20, depois trouxe-a para Portugal e começou a tratá-la mal. «Queria fazer-me de escrava», resume. Acabou por fugir, deixando a filha de quatro anos, que passou a viver com a avó paterna. Sem dinheiro nem apoio, foi um instante até perder a mão na vida. Começou a consumir álcool e drogas, dormia onde calhava em Lisboa: no Intendente, no Rossio, em Alcântara. No Casal Ventoso juntava-se com amigos para consumir, ia comer e tomar banho ao Centro de Acolhimento de Alcântara. Via a filha esporadicamente.  


Argentina Malhoa conta com o apoio constante de Cristiana Merendeiro, psicóloga na associação CRESCER. «É uma família, de coração»

Ao longo dos anos, Argentina passou por estruturas de acolhimento e tratamento, mas não se dava bem com as regras apertadas. «Se não se chega cedo, fica-se de castigo, uma ou duas semanas sem sair». Viveu em casa de amigos e conhecidos, mas nunca por muito tempo, porque «na casa dos outros há sempre problemas». Preferia viver por sua conta à hipótese de mandarem na vida dela. «Era melhor ficar na rua a ser escrava dos outros, quando já tinha sido». Era o seu grande medo, porque «no mundo há muita maldade». Argentina tem dificuldade em confiar, medo da desilusão. É um sentimento comum nas pessoas que vivem anos afastadas da sociedade, dos serviços, mas sobretudo da relação com os outros, confirma Cristiana Merendeiro, que a conhece há quase três anos, quando começou a trabalhar na CRESCER – Associação de Intervenção Comunitária. «A relação é a mais importante ferramenta do nosso trabalho. Mantemos o enfoque na ligação de proximidade e confiança ao longo da intervenção», explica. 


Desde que vive numa casa a saúde estabilizou, nunca mais voltou a dar entrada nas urgências do hospital

Argentina Malhoa viveu 20 anos em situação de sem-abrigo. Durante seis partilhou quarto numa pensão no Intendente, alimentava-se no refeitório dos Anjos, da Santa Casa da Misericórdia. Trabalhou no centro logístico da Jerónimo Martins, na Azambuja, mas a saúde ressentiu-se do ambiente de frio controlado. A desestruturação da vida na rua não dá saúde, menos ainda a quem a tem debilitada. Argentina tem VIH e é hipertensa. Em 2012 sofreu um AVC. Quando vivia na rua falhava as consultas de infecciologia, mantinha comportamentos aditivos e não tinha dinheiro para seguir uma dieta saudável. Não raras vezes deu entrada nas urgências do hospital. Desde que vive numa casa a saúde estabilizou, nunca mais teve recaídas.  


Recorda cada detalhe do dia em que entrou na sua casa pela primeira vez. Por pouco não desmaiou de emoção

Foi uma amiga quem primeiro lhe falou no projecto “É UMA CASA, Lisboa Housing First”, que proporciona casas e apoio em várias vertentes a pessoas em situação crónica de sem-abrigo, com problemas de saúde física e psíquica. Elda tinha vivido num quarto providenciado pela associação CRESCER e ia mudar-se para uma casa. Um dia convenceu Argentina a acompanhá-la às instalações da CRES- CER. Argentina acedeu. Conhecia há muito tempo os técnicos da associação, mas ia sem expectativas. Quando o director-executivo, Américo Nave, soube que estava de novo na rua, prometeu-lhe uma casa. Era sexta-feira, na segunda-feira seguinte recebeu as chaves. Por pouco não desmaiou de emoção. «Foi uma coisa muito linda, fiquei mesmo contente quando recebi a minha casa, toda mobilada, com fogão, comida, todas as coisas». Em Novembro faz três anos que Argentina Malhoa recebeu a sua casa, um rés-do-chão em Benfica, com um quarto, casa-de-banho, cozinha e um hall de entrada transformado numa pequena sala. A casa trouxe segurança, mas, acima de tudo, estabilidade para pensar em ir mais além.  

Cristiana acompanha Argentina até aos serviços administrativos da Junta de Freguesia de Benfica para ajudá-la a obter os documentos necessários à renovação do passe social. Percorrem a pé o caminho, conversando, entre as sombras do pacato bairro lisboeta. Todas as semanas Cristiana visita Argentina e ajuda no que for preciso. Além das visitas semanais, a CRESCER faz a ligação com as estruturas sociais e de saúde, facilitando o acesso à medicação, à alimentação e ao vestuário. Mas é mais do que isso. Na véspera, Argentina sentia-se mal, doía-lhe a garganta, «não conseguia estar sozinha», e foi a Cristiana que telefonou.  

«Não é como se fosse família, é uma família, de coração», diz, referindo-se aos técnicos da CRESCER. «Trabalham por amor às pessoas, para levantar os outros, isso é o importante». Argentina quer recomeçar a estudar. Diz que gostava de ser psicóloga, para ajudar pessoas «caídas», como ela estava. Já integrou as equipas de rua da CRESCER dando apoio, com a sua experiência, a quem vive na rua. Ambiciona criar uma associação de pares que dê apoio a mulheres em situação vulnerável. «Aquilo que fizeram por mim quero fazer também para os outros. É a compensação. Não é bom?», interroga, satisfeita. Desde que tem uma casa, recuperou a relação com a filha, Yolanda. Gosta de recebê-la e aos dois netos, em casa. Dá-se bem com a vizinhança, é simpática e cumprimenta toda a gente. Sabe que se não se fechasse tanto em casa já podia ter amigos no bairro. Gosta de cozinhar e poder comer a comida que confecciona. «A nossa casa é a nossa casa. Ninguém manda na nossa casa», diz com um sorriso largo, enquanto apanha a roupa do estendal.
 

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