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29 outubro 2021
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira Vídeo de Hugo Costa Vídeo de Hugo Costa

A terra predestinada

​​​​​​​​Judeus em Portugal e portugueses no Brasil? Em Belmonte se vê como faz sentido.​

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Se conseguir descobrir qual é a porta principal da Torre de Centum Cellas e por ela entrar, enfrentará uma serpente. Caso não mostre medo, ela transformar-se-á num baú de ouro. Nado e criado na aldeia de Colmeal da Torre, Henrique Quelhas conhece bem a lenda, uma das muitas em torno do edifício. «Era o meu jardim de infância», recorda. Entrou em todas as portas e até fazia corridas de bicicleta no espaço adjacente. «Ainda não sabíamos o que era parkour, já eu o praticava aqui». Bem mais destemido do que é hoje, as filhas tomaram o seu lugar na aventura. 


O enfermeiro Henrique Quelhas cresceu a brincar na Torre de Centum Cellas: «Ainda não sabíamos o que era parkour, já eu o praticava aqui»

Dão-se alvíssaras a quem desvendar o enigma da Torre de Centum Cellas, erguida a um par de quilómetros de Belmonte. A hipótese de ter sido o centro de uma villa romana, dada como a mais provável, é uma entre várias. Henrique, enfermeiro de profissão, integrou-a na sua proposta de roteiro turístico como uma espécie de terceira via entre as duas marcas identitárias do concelho: Pedro Álvares Cabral, que lá nasceu, e o judaísmo. Compreende que a protecção do monumento exige uma cerca, mas sente que o torna «mais pesado». É tão periclitante que parte das paredes só se mantém de pé graças a estruturas metálicas. 

As cinzas do navegador estão no Panteão dos Cabrais, na Igreja de Santiago

O percurso começou na Igreja de Santiago e no castelo, dois dos espaços inscritos na história da outrora todo-poderosa família Cabral – o apelido não sobreviveu por estas bandas, talvez porque o comandante da expedição que em 1500 desembarcou na costa do actual Brasil morreu em Santarém. O Panteão dos Cabrais, no templo do século XIII hoje musealizado, guarda as suas cinzas. Antigo abrigo de peregrinos a caminho de Compostela – um dos caminhos de Santiago passa na vila – a igreja exibe uma escultura gótica de Nossa Senhora da Piedade, granítica como só na serra. 

Caria de um lado, Colmeal da Torre do outro. As faldas da Serra da Estrela, por onde passa o Zêzere, ainda bebé. O Monte da Esperança ou, bem mais próxima, a antiga judiaria. Do castelo se contempla boa parte do pequeno concelho da Cova da Beira, cujas muralhas Henrique Quelhas percorre pacientemente. Do forte que ajudou a pôr em sentido os vizinhos ibéricos, resta a torre e a janela manuelina, encimada por um brasão que cruza Cabrais e Castros, símbolo do matrimónio de João Fernandes Cabral com Joana Coutinho de Castro. 


A história do castelo é a da árvore genealógica dos Cabrais

A história do castelo é a da árvore genealógica dos Cabrais, porque a hereditariedade determinava a ascensão ao domínio político. A administração militar de Belmonte, confiada por D. Afonso III a Aires Pires Cabral, deu o mote. Fernão Cabral, pai de Pedro Álvares, foi o primeiro alcaide-mor. Nomeado a título definitivo, em 1466, criou condições para a família fixar no castelo a sua residência, parcialmente consumida por um incêndio no século XVII. 


Construído no logradouro do Solar dos Cabrais, o Museu dos Descobrimentos revisita a expansão marítima, sem ocultar sombras

Na vila, hoje integrada no Programa das Aldeias Históricas, Cabral é omnipresente. No castelo como na estátua do navegador. No Ecomuseu do Zêzere, que aproveitou o antigo celeiro familiar, como na igreja matriz, onde está a imagem da Senhora da Esperança, que se diz tê-lo acompanhado na célebre viagem. E, evidentemente, no Museu dos Descobrimentos. Construído no logradouro do Solar dos Cabrais, revisita a expansão marítima, sem ocultar sombras. Sentimo-nos numa nau da armada de Cabral. Confrontamo-nos com o eterno dilema da intencionalidade ou ocasionalidade do achamento. Entramos, entre tempestades, na sala do Mar Alto, maravilha de tecnologia interactiva, montra da coragem dos marinheiros quinhentistas. Reflectimos sobre a escravatura, a influência indígena na construção do Brasil, os sermões do padre António Vieira. E, entre samba e bossa nova, ouvimos pregões de produtos brasileiros.


A fé judaica manteve-se «na intimidade das famílias», afirma o vice-presidente da Comunidade Judaica, João Diogo

Caso sem igual na Península Ibérica de preservação da cultura e da tradição hebraicas, durante séculos, Belmonte é o território de eleição do criptojudaísmo. A referência ao paga- mento da sisa judenga no foral de D. Sancho I, de 1199, revela quão remota é a presença de judeus. A partir de 1496, quando D. Manuel I decretou a conversão forçada ao catolicismo, mantiveram acesa a sua fé. «Na intimidade das famílias, para tapar os olhos aos inquisidores», explica o vice-presidente da Comunidade Judaica de Belmonte, João Diogo.

Baptismos forçados, tortura e confisco de bens: no cerco do Santo Ofício germinou o criptojudaísmo. Cristãos por fora, judeus por dentro, tornaram-se exímios na arte da camuflagem. Aprendiam orações católicas, exibiam a cruz de Cristo nas sepulturas. Clandestinamente, porém, festejavam a Páscoa judaica, consumiam alimentos kosher, confeccionados segundo preceitos judaicos, usavam objectos característicos da sua cultura, como revela o Museu Judaico de Belmonte. «Ainda hoje, se contactarmos com pessoas de uma certa idade, têm algumas práticas que não sabem explicar, mas que estão liga- das ao judaísmo», nota João Diogo. O sistema sobreviveu porque as “rezadeiras” transmitiam os ensinamentos da Tora. «Religião de patriarcas mantida por mulheres», como escreveu Maria Antonieta Garcia, autora de vasta obra sobre os judeus belmontenses.

Retomar o lugar no concerto social foi um processo lento. De acordo com a investigadora, só nos anos 1980 ressurgiu a prática da circuncisão. Um funeral sem padre católico aconteceu pela primeira vez em 1988 e um casamento de ritual judaico em 1991, dois anos após a criação oficial da Comunidade. Apesar da democratização do país, admite João Diogo, os judeus «tinham um certo receio». Actualmente meia centena, constituem a terceira Comunidade, a seguir às de Lisboa e do Porto. «Já fomos mais, mas algumas pessoas partiram para Israel». Um dos que respondeu ao apelo do regresso às origens foi António Mendes, antigo presidente da Comunidade, em 2014.


Na antiga judiaria, misturam-se referências religiosas

Na antiga judiaria, misturam-se referências religiosas. As paredes das pequenas casas térreas de granito, onde residiam judeus, acolhem imagens de Nossa Senhora de Fátima. Mas a sinagoga Bet Eliahu (Casa de Elias) comprova que a liberdade de culto veio para ficar. O templo inaugurado em 1996, oferta do judeu marroquino Salomon Azoulay, ocupa um terreno doado pelos herdeiros da família Mendes Henriques. Como não podia deixar de ser, conserva reproduções de salvo-condutos e passaportes emitidos em 1940 por Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português em Bordéus que salvou milhares de judeus.

​GLOSSÁRIO
​Criptojudaísmo – Prática da religião judaica em sigilo. Os judeus secretos respeitavam na aparência os preceitos do catolicismo, mas continuavam a praticar clandestinamente as tradições dos seus antepassados.

Marranos – Palavra que etimologicamente terá origem no hebraico mar-anús (baptizado à força) designava na Península Ibérica os judeus forçados a converterem-se ao catolicismo.

Santo Ofício – Também conhecido por Inquisição, o Tribunal do Santo Ofício era uma instituição da Igreja Católica que visava reprimir movimentos heréticos, promovendo sobretudo a perseguição de judeus. Em Portugal, actuou entre 1536 e 1821.​

 

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