Quando Anabela Rodrigues chegou ao Fundão, disseram-lhe: «Nunca mais de cá sai». Cumpriu-se a profecia, sorri a directora-técnica da Farmácia Avenida, no centro da cidade. Passaram 23 anos. «Sinto-me adoptada. As pessoas são muito afáveis, gostam de acolher quem vem, de partilhar histórias e tradições».
A simpatia das gentes foi interiorizada pela farmacêutica, anfitriã de uma viagem por lugares de costumes simples e milenares. Numa «paisagem de postal», como ela descreve.
Os sentidos começam a despertar mal se deixa o Fundão para trás, com as igrejas, cafés centenários e ruas históricas, rumo a uma natureza pouco explorada. Há os sons e silêncios do campo, o cheiro a terra e a erva ainda húmida do orvalho da noite.
Tábuas e cordas convidam a percorrer o topo das árvores no Parque do Convento
Na estrada que sobe a Serra da Gardunha fica o Parque do Convento. Algumas tábuas e cordas convidam a percorrer o bosque lá em cima, no topo das árvores enormes. Um casal chega de bicicleta ao Centro de BTT. Uma cabra brame no pasto, bem perto.
Ouve-se o dançar suave dos ramos em sincronia com o canto dos pássaros, um ou outro passo sobre os tapetes de folhas no chão. «O pôr-do-Sol aqui é magnífico. Gosto de passear nestes caminhos, descontrair ao fim do dia», confidencia Anabela.
O Parque é a porta de entrada para a Gardunha, serra amada pela guia e, antes dela, por ilustres filhos da terra. Eugénio de Andrade revelou várias vezes nos seus poemas a influência dos lugares onde passou os primeiros anos. António Paulouro fundou o histórico Jornal do Fundão, famoso pela resistência à censura antes do 25 de Abril. Nas páginas do jornal escreveram nomes da literatura luso-brasileira como José Saramago, José Cardoso Pires, Carlos Drummond de Andrade ou Érico Veríssimo.
No cume da Gardunha, onde o granito compete em abundância e beleza com a vegetação, percebe-se a paixão de Anabela. Perto, espreita a Serra da Estrela.
A vista é magnífica no Natura Glamping
Para trás fica o Natura Glamping, onde conforto e respeito pela natureza estão em harmonia. Montanhas e nuvens desenham sombras sobre os povoados.
Em baixo, na Cova da Beira, avista-se o Fundão e a Covilhã. Algumas aldeias salpicam os verdes e castanhos das árvores, muitas ainda despidas nesta altura do ano. É o caso das famosas cerejeiras. «Em Março, começam a ficar em flor, todas branquinhas», anuncia a guia.«Passear pela Gardunha é muito relaxante», comenta a directora-técnica da Farmácia Avenida, enquanto saboreia o ar puro do lugar. «Todos os pintores, poetas, músicos deviam passar por esta serra. É inspiradora a todos os níveis». Os motivos são simples: «As cores, os sons da natureza. O silêncio que acaba por não ser silêncio; tem sons próprios. É muito engraçado, respondem uns aos outros. Os pássaros aos grilos, os grilos às quedas de água...», comenta a farmacêutica.
Eugénio de Andrade, nascido a 19 de Janeiro de 1923 na Póvoa de Atalaia, aldeia ao Sul da Gardunha, agradeceu à terra que o viu crescer: «Devo ao céu camponês da minha infância esse princípio de paixão que me leva a procurar nas palavras o rumor do mundo».
Anabela começou a descobrir «a terra, a água, o sol, o vento» de Eugénio há apenas seis anos, depois de uma vida dedicada aos filhos e à farmácia. Ainda se deslumbra. «Eugénio de Andrade usa palavras simples, mas carregadas de significado e sentimento».
O município do Fundão devolveu ao menino José Fontinhas, nome com que nasceu, o amor dedicado, e criou na antiga escola primária da aldeia a Casa da Poesia Eugénio de Andrade. O poema “Mulheres de Preto”, acompanhado por uma foto de idosas da Póvoa, detém o olhar.
No lado Norte da Gardunha, a estrada começa a serpentear até Janeiro de Cima, no extremo Noroeste do concelho que pega com Oleiros. O granito dá lugar ao xisto. Por baixo dos pinheiros, a terra cobre-se de laranjas e vermelhos, os tons da argila e do xisto. Ao longe, outra serra, a do Açor.
O rio Zêzere começa a acompanhar o percurso. Em nenhum outro ponto tem tantas curvas como aqui. «Gosto muito de Janeiro de Cima por causa do rio», diz Anabela, ao chegar à zona de descanso da aldeia, junto ao Zêzere. Pedra rolada do rio e xisto são as matérias-primas usadas nas casas de tons quentes. Apesar do frio, há pessoas a conversar nas ruas.
Filomena Latado, 62 primaveras contadas, tem os olhos pregados na televisão da mercearia de que é dona. Tem bom motivo: as duas filhas estão em directo no programa da manhã, a falar das tradições de Janeiro de Cima. «Tomaram conta da Casa das Tecedeiras há uns seis anos», conta a mãe, orgulhosa. «A Sónia começou a aprender a tecer tinha 15 anos. A Manuela ajuda-a na gestão», explica, enquanto procura a chave da Casa, onde se recria a tradição ancestral de tecer o linho.
Antes de partir à descoberta de outras tradições em aldeias próximas, provar a chanfana tradicional de carne de cabra velha no Fiado Restaurante é experiência obrigatória.
Na Casa do Bombo, em Lavacolhos, entra-se na banda e toca-se bombos
Em Lavacolhos, aldeia mais próxima do Fundão, o entusiasmo de Luís Fernandes é contagiante. O espaço museológico, conta o guia, recria a história dos membranofones, a família musical à qual pertencem os bombos. A escolha de Lavacolhos para a instalação da casa destes instrumentos de percussão não foi ao acaso: «Nesta zona, tocar bombo é uma tradição com mais de dois séculos, segundo Michel Giacometti» etnomusicólogo francês que dedicou a vida a estudar e registar a música tradicional portuguesa, explica Luís. «Ao tocar, o homem mostra do que é capaz. É uma expressão de virilidade».
Reza a memória popular que, durante as invasões francesas, estes instrumentos terão sido fundamentais para afugentar as tropas de Napoleão. «Contam que, quando ouviram o exército a chegar, os homens puseram-se a tocar bombos», diz Luís. O som a ecoar pelas serras terá assustado os invasores, que evitaram a zona. No século XXI, ainda «todos os homens da aldeia sabem tocar». O visitante também pode experimentar na Casa do Bombo.
A noite cai nas encostas da Gardunha. Sucedem-se os pontinhos de luz e cheira a lareira. Há muito mais a descobrir no Fundão. Anabela aconselha o regresso, com um sorriso. «Bem-haja», expressão de agradecimento repetida amiúde na Beira Interior, é perfeita para o momento. Fica o desejo de regressar.