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3 dezembro 2017
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

A mulher que respira a vida

​​​​​​​​​​​​​O segredo da energia de uma professora de ioga com 93 ​anos. 

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Energia. Foi a energia da respiração a levantar Clotilde Ferreira da operação às ancas a que foi sujeita aos 90 anos. Leu bem: aos 90 anos. Dona ‘Clô’, como é conhecida, levantou-se e caminhou, «com a permissão do médico, claro», porque… respirou. Parece demasiado simples? É o resultado de uma vida inteira a conhecer o corpo.

«No fundo, o ioga é a concentração e o trabalho de cada movimento», explica a professora Clô, sentada, costas direitas, os gestos acompanhando as palavras.

«Quando levantamos o braço, sabemos que levantamos o braço acompanhando sempre com a respiração», continua. Sabe do que fala. Ensina ioga há meio século no Ginásio Clube Português, em Lisboa.

Afinal, a fonte da vida é apenas a consciência da relação intrínseca dos movimentos do corpo com a respiração.

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No Ginásio Clube Português, Clô ensina o Kripalu ioga​

Ouvindo-a e olhando-a, sorridente, pequena e segura, na residência para idosos onde vive, é estranho pensar que passaram só duas semanas desde que caiu desamparada. Mais uma vez, o ioga ajudou-a. «É a minha vida», repetirá ao longo da conversa.

Prestes a completar 94 anos, no dia 10 de Janeiro, Clô «tem uma energia sem igual», define a aluna Manuela, 74 anos. E partilha-a todos os dias, ajudando os alunos no encontro com esta forma de estar na vida. Tal como foi ajudada há muito tempo quando, ao ler um artigo numa revista, percebeu que o seu caminho poderia passar pelo ioga. «Engraçado, é uma maneira diferente de fazer ginástica!», pensou na altura. «Nunca tinha ouvido falar».

Mas vamos ao início da história. Clô foi uma menina curiosa e empenhada na escola, «marrona», como se descreve, sorrindo de alegria como só os sábios sorriem. Vivia com os tios e dois primos. «Os meus pais estavam no Congo Belga, em África. O meu tio ajudou-me muito, achava graça a que uma miúda se interessasse por certas coisas. Eu perguntava porquê e ele explicava-me», recorda.

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Fotografia antiga, numa posição de ioga​

Uma das suas grandes paixões era a ginástica. «Faço ginástica desde miúda. E sabe como são as miúdas: com sete, oito anos, o meu corpo fazia coisas fantásticas… gostava muito!» Sorri de novo, para logo acrescentar: «Foi muito divertido, devia ter seguido». O destino, porém, trocou-lhe as voltas.

Aos 18 anos, com os estudos de liceu completos desde os 15, durante uma visita à família em África conheceu um rapaz de origem belga, com quem acabaria por casar. E, na mesma altura, descobriu o ioga, no tal artigo numa revista.

Obstinada, procurou «ir a fundo» na descoberta. Instigada por um amigo médico, foi «à Bélgica fazer um curso, porque não sabia o que era o ioga». Foi amor à primeira experiência.

Os anos seguintes foram passados entre Portugal, a Bélgica e o Congo Belga, onde o marido criara uma empresa com dois amigos. «Ele era director e sócio da companhia», desfia a dona Clô, enquanto declara o seu amor por África. «Gostei muito do Congo. África é um encanto». Nasceram os filhos do casal, primeiro António, depois Alexandra, e Clotilde dedicou-se à família. Continuava a praticar ioga para bem-estar pessoal.

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Fotografia tirada nos anos 50, num momento de alegria

Alguns anos depois, a vida voltou a trocar-lhe as voltas. O marido contraiu tuberculose. «Comecei a dar aulas na Bélgica e no Congo quando ele estava doente. Ele dizia-me: “Vai buscar energia, tu trazes-me muita energia”. E era, eu vinha cheia de energia… Saía de manhã, ia dar aula, voltava e ficava a fazer as respirações com ele. E isso ajudou-o muito… Eu já sabia que não tinha cura, o médico informou-me. Tinha os pulmões muito atacados, fumava imenso».

Aos 38 anos, viúva com dois filhos pequenos, Clô voltou a Portugal. «Foi uma grande mudança», diz, em jeito de resposta às condições difíceis que viveu. «Tinha de os ajudar, percebe? Tinha de ser alegre.» De novo sozinha, foi buscar energia ao mais fundo de si, «ao ioga», para recomeçar.

Dirigiu-se ao Ginásio Clube Português e perguntou se estavam interessados nas suas aulas. «E eles aceitaram logo, foi fantástico! Uma grande ajuda».

Entretanto, continuou a ir a Bruxelas e a seminários na Suíça para se formar. «Todos os anos, no início de Agosto, íamos a Zinal [pequena localidade de serra na Suíça]».

É dessa época o seu encontro com aquele que escolheu para seu mestre, o yogi indiano Almrit Desai. Continuou a ir a Zinal. «Fui cinco anos, segui uma ordem. Tinha de conhecer bem o corpo primeiro, perceber o porquê. No ioga é assim. E depois de conhecer bem o corpo, praticar».

Com o yogi, apaixonou-se pelo Kripalu ioga, por isso decidiu ir aos Estados Unidos, onde ele ensinava. Para aprender e aprofundar conhecimentos sobre a prática assente na respiração.

Enquanto fala, Clô sorri e repete: «E aqui estou, há 50 anos a fazer ioga…, a minha vida é baseada no ioga».

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Os alunos seguem a professora nos movimentos à frente, acompanhando sempre com a respiração

De novo no presente. Nesta tarde de terça-feira, duas semanas após a queda que a manteve afastada do Ginásio Clube Português, Clô vai dar aula, como faz sempre de segunda a sábado. «Prometi ir esta semana», esclarece. «Se nós trabalharmos, mesmo quando caímos, conseguimos ultrapassar mais depressa. Não esperamos que cicatrize. Quer dizer, o movimento continua aberto… É difícil explicar isto no ioga».

Contentemo-nos em testemunhar a tremenda força desta mulher. A mesma que a levantou quando, aos 90 anos, foi operada às ancas, «gastas com todo o trabalho». «Agora estou óptima. Aliás, o médico, disse-me: “Depois da operação, a senhora faça o que costuma fazer”».

Ela costuma fazer ioga. «Logo a seguir à operação, fiz as respirações para me dar energia. Todas as manhãs, fazia a respiração ioga e ia tentando fazer o movimento». O método é sempre o mesmo, explica: «Podemos fazer toda uma aula mental. Quando eu estou deitada e estou mentalmente a pensar levantar o braço, estou a levantar, mesmo sem o levantar».

Os seus dias estão impregnados desta consciência permanente. «Quando tomo duche, quando me visto, tenho sempre a intenção de o fazer de maneira consciente». É tudo uma questão de concentração. «Quando visto as calças, estou a vestir as calças, uma perna, depois a outra. Estou a pensar no que estou a fazer… Isso chama-se consciência». E é a fonte da energia sem igual de Clô.
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