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29 outubro 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Luís Silva Campos Fotografia de Luís Silva Campos Vídeo de André Torrinha Vídeo de André Torrinha

A mulher que quer mudar o mundo

​​​​​​​​​​​Pelo exemplo e com pedagogia, Susana Pinto propõe uma nova forma de olhar a deficiência. 

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​Há momentos que são revelações. Episódios que nos confrontam connosco próprios e nos tornam mais humanos, empáticos com as fragilidades dos outros. Susana Pinto, empreendedora na área social, recorda duas ocasiões que modificaram o modo como olhava a deficiência e a paralisia cerebral que lhe foi diagnosticada aos três meses. No primeiro, tinha 23 anos e era atleta de alta com- petição em natação quando conheceu um atleta espanhol que achou muito atraente, num campeonato europeu. Quando um dia, na piscina, ele despiu a camisola e ela viu o seu corpo queimado perdeu o interesse por ele. «Eu queixo-me do preconceito dos outros para comigo e afinal também o tenho», percebeu. O segundo episódio deu-se quando soube que ia competir com uma atleta holandesa a quem faltavam os braços e as pernas. De uma forma que reconhece «insensível», pensou que ganharia facilmente, achava-se «perfeitinha comparativamente». Perdeu. «Olhei para ela como inferior e afinal quem não tinha capacidade era eu. Nesse momento deixei de ter pena de mim». 


As barreiras sociais obrigaram-na desde sempre a um esforço suplementar: «ter de impor as minhas competências técnicas para provar que sou "igual"»

Antes da pacificação, Susana Pinto passou por uma fase de revolta, na adolescência. Acreditava que o que não acontecia de bom tinha a ver com a deficiência. «Eu era perfeita, os outros é que eram os maus». Nos dez anos como atleta de alta competição, em que participou nos Jogos Paraolímpicos de Barcelona e de Atlanta, em 1992 e 1996, deparou-se com um mundo maior do que aquele onde circulava em Portugal. Viu «o mundo ao contrário», em que quem era “normal” estava em minoria. Viu corpos «de todos os feitios», raparigas que pintavam com naturalidade as unhas das próteses dos membros inferiores, a combinar com a cor do vestido. «Achei que estava a perder tempo em tentar ser uma mulher como outra qualquer. Simplesmente, tenho uma cadeira de rodas», resume. ​​

O desporto foi a rampa de lançamento para todas as vivências. Susana acredita que este continua a ser um grande trunfo para a «auto-consciência da diferença». Depois hesita, revê a palavra, talvez “diferença” não seja a melhor expressão, porque «ninguém é igual e eu também não quero ser igual a ninguém!». E ri sinceramente. 
Com a mesma honestidade com que assume preconceitos, Susana desvenda temas tabu no universo da deficiência: a percepção da auto-imagem e da feminilidade, a sexualidade, a maternidade. «Como qualquer pessoa, vivemos a componente sexual, mas isto não é falado ou criam-se mitos, como o de nos apaixonarmos pelo primeiro homem que vemos». Gostava de ter sido mãe, mas abdicou por receio de não ter rede de apoio para ajudar a superar as dificuldades de ser cuidadora de um ser dependente, estando sentada numa cadeira de rodas. ​

No Parque das Nações, onde mora, gosta de circular na máxima velocidade permitida pela cadeira

A paralisia cerebral comprometeu-lhe a coordenação motora e a dicção. Não teve qual- quer dano cognitivo, apesar da associação quase imediata que o nome provoca. Na infância, passou por múltiplas terapias e uma correria a médicos da especialidade na esperança de poder andar. «Por mais medicinas alternativas que fizesse, e fiz bastantes, eu nunca ia andar e nunca andei», desdramatiza. Acredita que o tempo teria sido mais bem empregue a brincar, a ser criança. Passou pelo ensino especial, transitou para o normal, concluiu a licenciatura em Gestão no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, fez uma pós-graduação em Empreende- dorismo Social na Escola Superior de Tecnologia da Saúde do Porto. Pelo caminho esbarrou, literalmente e em sentido figurado, em barreiras arquitectónicas e sociais. A ausência de rampas impedia que frequentasse recreios e participasse nas actividades regulares. As sociais obrigam-na desde sempre a um esforço suplementar, «a ter de impor as minhas competências técnicas para provar que sou “igual”». Susana acredita que a prioridade é mudar mentalidades: «Se o outro me vir de igual para igual, no dia seguinte coloca uma rampa no restaurante, no teatro, no com- plexo desportivo…». 

O isolamento social que enfrentou enquanto estudante, tão contrário à sua personalidade, contribuiu para decidir o que queria fazer na vida: apoiar pessoas em risco de isolamento. Começou a fazer voluntariado, criou o Clube dos Rodinhas Radicais na faculdade, mais tarde uma associação chamada Gulliver, que convidava pessoas, com deficiência ou não, a participar em actividades culturais. Profissionalmente, passou pelo sector privado, nas áreas logística e financeira, pelo município de Odivelas, e trabalha agora no sector social da Câmara Municipal de Lisboa. Durante a pandemia concebeu um novo projecto social – Fora da Caixa, para sensibilizar empresas a empregar pessoas com paralisia cerebral. «A ideia é partilhar episódios vivenciados em vários contextos e empoderar outras pessoas com paralisia cerebral», explica. 

​​​Susana Pinto faz as compras no comércio local, vai de trans​portes para o trabalho, vive com o namorado há 11 anos

No Parque das Nações, onde mora, Susana tem a georreferenciação mental das rampas disponíveis. A cadeira tem várias velocidades, ela gosta de circular na máxima. Faz as compras no comércio local, vai de transportes para o trabalho, embora conduza, vive com o namorado [também ele numa cadeira de rodas, devido a um acidente de viação] há 11 anos. Contam com apoio domiciliário de manhã e à noite, nas viagens precisam de uma pessoa para dar apoio. No restante, a vida é similar a tantas outras. Aos fins-de-semana gostam de ir ao cinema, ao teatro, ler, almoçar com amigos ou a família. «É mais difícil, mas é possível fazer uma vida normal, desde que haja redes de apoio», diz. 
Susana Pinto recusa viver centrada nas limitações da deficiência ou adoptar a via do “coitadinho”. «Só com uma posição participativa a sociedade vai sentir necessidade de mudar». Prefere a pedagogia ao activismo agressivo, pois acha que é mais útil fazer o dono do café perceber que pode ganhar clientes com uma simples rampa, do que hostilizá-lo porque não a tem. Reclamar é contraproducente, defende: «Ficamos com o ónus de sermos revoltados». 

Um dos mitos que quer desconstruir é a perspectiva com que se olha para a deficiência e as incapacidades. «Eu uso uma cadeira de rodas, mas não uso óculos, por exemplo. Não posso andar, mas tenho competências que outras pessoas não têm». Também a inquieta a culpa que muitos pais sentem e a preocupação quase obsessiva em optimizar a funcionalidade motora das crianças, que lhes coloca pressão e rouba tempo à brincadeira. Susana alerta que é importante os pais brincarem com as crianças da mesma maneira que fariam com um filho sem deficiência. «Essa relação natural entre pais e filhos é determinante para o crescimento emocional da criança». 
No amplo passeio junto ao Tejo, Susana pára a cadeira para conversar com uma criança, distrai-se a ver cachorros a brincar, sorri, divertida. Estar sentada numa cadeira de rodas torna-se nada mais que uma especificidade. 

 
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