Miguel atira água ao rosto. Uma vez e outra. Repete o gesto, abrindo e fechando os olhos incessantemente. O coração acelera e perde-se em medo. À sua volta, uma escuridão cortante.
«Estava numa pausa do trabalho quando tudo aconteceu. O meu instinto foi lavar a cara».
Durante um período de pausa no emprego, em 2005, o inesperado aconteceu: cegou dos dois olhos. «Usava óculos desde criança, mas nada fazia prever isto».
Uma ida ao Hospital Militar de Luanda – cidade de onde é natural e onde trabalhava como fiel de armazém – antecipou a gravidade do diagnóstico. «Passei o dia do 20.º aniversário na cama do hospital».
Seguiram-se oito meses de internamento, até os médicos perceberem que o problema de saúde, coloboma corioretiniano e disco bilateral associado a distrofia da retina de aparecimento precoce, não poderia ser resolvido em Angola. «Foram momentos muito difíceis, um desespero enorme…».
Miguel Vieira nunca permitiu que a cegueira o impedisse de viver com otimismo
Na flor da juventude, perto de ter a carta de condução, sofreu um corte umbilical com o mundo tal como o conhecia. Caiu em revolta e num desnorte sem fim. «Cheguei a pensar em acabar com a minha vida», admite.
Ainda a reagir ao choque e a aceitar a nova condição física, Miguel Vieira decidiu enfrentar o «novo desafio» que a vida lhe trouxe: a 4 de novembro, do mesmo ano embarcou num avião, sozinho, em busca de tratamento. «Vi-me em Portugal, só, sem família, num país que me era desconhecido». Sem qualquer apoio, iniciou um percurso de sobrevivência sem desistir do seu principal objetivo de vida: conseguir uma solução para a falta de visão súbita.
«Costumo dizer que eu não sou cego, tenho sim uma lesão nos olhos. Cego é a pessoa que vê e não quer ver. E eu vejo muita coisa ao meu redor, vejo oportunidade», frisa o atleta de 37 anos.
Lentamente, Miguel foi aceitando a sua nova forma de estar. Superou-se. Nunca se permitiu desistir ou deixar de enfrentar os seus medos. Por isso mesmo, já cego, entrou no mar e venceu o medo da água.
Aprendeu a usar bengala, a deslocar-se de metro e autocarro, e a identificar lugares e pessoas. Empenhado em reconstruir a sua vida, palmilhou Lisboa, entre 2014 e 2020, com a cadela-guia Vespa. Atualmente conta com o Cocas, um cão labrador. «Ele não gosta nada de fotografias!», ri-se Miguel, enquanto é fotografado ao lado do cão-guia.
Em 2012, com o 12.º ano concluído e a trabalhar, Miguel Vieira recuperou um gosto antigo, que acabaria por ser a sua “cura”: o judo.
Atleta paraolímpico medalhado em Portugal e no estrangeiro, Miguel Vieira é uma inspiração para o filho Gabriel, de 12 anos
«Comecei a praticar a modalidade aos 14 anos, em Luanda. Era cinto branco». Entrou em contacto com o Clube Judo Total, na Ameixoeira, em Lisboa, e ali começou um percurso desportivo que viria a ser marcado por muitas conquistas, alegrias e medalhas.
«Até hoje, lembro-me da minha primeira aula aqui no clube [risos]. Pisar um tapete igual àqueles que só tinha visto na televisão foi uma sensação incrível…».
Foi o primeiro português a participar numa competição internacional de judo para cegos e, em 2013, ganhou a medalha de ouro num Open Internacional de Judo Paraolímpico. Concluiu a participação nos Jogos Paraolímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, no nono lugar. «O judo vive em mim», solta, entusiasmado.
A cada nova etapa desportiva, soma êxitos em Portugal e além-fronteiras.
18h48. 1 de março de 2023. De judogi azul, Miguel executa os primeiros exercícios de aquecimento. No tatâmi, revela-se rápido e ágil nos movimentos face aos restantes judocas. «Sou cego, é verdade, mas não é a cegueira que me define».
Na mesma tarde, para fazer randori (simulação de luta), conta com um parceiro especial: o filho mais velho, Gabriel, de 12 anos, igualmente judoca e também medalhado.«O que mais gosto no meu pai é que ele cuida de mim», elogia Gabriel.
Em 2007, na sequência de uma operação, Miguel Vieira recuperou a visão de um olho voltando, no entanto, a perdê-la. Graças à conquista temporária, ainda viu nascer este filho.
Fernando Seabra, seu treinador desde o início do percurso desportivo, atesta a competência e o talento desportivo do vice-campeão da Europa e atual campeão nacional. «Enquanto judoca, é bastante evoluído tecnicamente. E, graças ao seu esforço e dedicação, evoluiu rapidamente. Tem feito um caminho absolutamente fantástico!», elogia o responsável.
Todas as semanas, acompanhado pelo seu cão-guia Cocas, o judoca português desloca-se até ao Clube Judo Total, em Lisboa, para treinar
No tatâmi e na vida, Miguel é imparável. Pai de três filhos, trabalha desde 2019 como administrativo e operador de contact center na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, tendo concluído, no verão passado a licenciatura em Comunicação Empresarial e Relações-Públicas, na Escola Superior de Comunicação Social – Instituto Politécnico de Lisboa.
Em fevereiro, conquistou duas medalhas de ouro nas categorias de -60 kg, a J1, para cegos totais, e J2, de visão parcial, no Open da Alema- nha da IBSA, competição para judocas cegos e de baixa visão.
«Nasci para vencer, acredito. Vou dar sempre o meu melhor», liberta, entusiasmado.
O Miguel agarra as pedras que aparecem no caminho «e faz delas degraus, para continuar a subir», garante a companheira, Dáfine Andrade, 35 anos. «Ele é muito resiliente, tem uma inteligência emocional fora do comum. É um raio de luz!», diz a companheira.
Orgulhosa, Dáfine Andrade, companheira de Miguel, está presente em todas as etapas desportivas do judoca português
Praticante da modalidade e a estrela mais nova do Clube Judo Total, Ângelo Amador, oito anos, cinto amarelo, olha com admiração Miguel Vieira. E não por acaso. Ao cair da noite, Miguel, como em tantos outros dias e noites, mantém-se firme na luta.
«Um dia quero ser como ele e ganhar muitas medalhas!», confessa o amigo Ângelo.