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2 agosto 2019
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

A liberdade passa por aqui

​​​​​​​Museu da Farmácia premiado por preservar a memória do Holocausto.

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11 de Abril de 1945. Melvin Libermann foi um dos soldados da Terceira Divisão do Exército americano que ocupou o campo de concentração de Buchenwald. Eram 15h15. A hora da libertação permanece imortalizada no relógio da torre do campo que, naquele dia, ainda aprisionava 21 mil pessoas. 900 crianças. Não havia câmaras de gás no campo construído na colina de Ettersberg, a oito quilómetros da cidade de Weimar, no Leste da Alemanha. Ainda assim, calcula-se que ali tenham morrido 56 mil pessoas. Uma em cada cinco das que por lá passaram entre 1937 e 1945. Vítimas de fome, doenças, assassinato ou experiências médicas com vacinas e tratamentos contra doenças contagiosas, como o tifo, a febre tifóide, a cólera e a difteria.

Requisitado para exercer a actividade de farmacêutico, o jovem solda​​do não estava preparado para o que encontrou quando atravessou o portão, encimado pelo lema “Jedem das seine” (A cada um o seu). Como os restantes companheiros de armas, sabia que os judeus estavam a ser presos e recolocados, tinha ouvido falar de execuções. Mas era inimaginável um horror com tamanha dimensão. Melvin, também ele judeu, contou que entrar naquelas casernas cheias de seres humanos cadavéricos foi como entrar noutro mundo, um «inferno humano». O cheiro era nauseabundo.

Com a sua câmara, registou para sempre uma das maiores ignomínias da História da Humanidade. Cinco dessas fotografias estão guardadas no Museu da Farmácia, em Lisboa. «Foram as primeiras peças que conseguimos. Há dez anos, o Holocausto passou a fazer parte da história do Museu da Farmácia», conta o director, João Neto. Que um ex-soldado norte-americano, na altura com 88 anos, tenha decidido doar os seus relatos escritos e fotográficos a um museu português explica-se pela persistência de João Neto. «O facto de ele ser farmacêutico também ajudou», brinca.


Do espólio do Museu da Farmácia fazem parte relatórios de detenção de cientistas e médicos nazis que usaram judeus como cobaias 
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Desde então, o Museu da Farmácia tem vindo a construir uma colecção de peças ligadas ao Holocausto. Dela fazem parte os relatórios de detenção de alguns nazis envolvidos em experiências médicas com seres humanos. Karl Brandt, médico de Adolf Hitler e Comissário  para a Saúde e Saneamento, «autor da ideia de usar o serviço de saúde alemão para concretizar o ideal de limpeza ariana». Fritz Meer e Herman Schmitz, industriais ligados ao IG Farben, o laboratório alemão que desenvolveu a produção do gás nervoso Zyklon B, usado nos campos de concentração como arma de destruição em massa. «Estes documentos marcam a diferença entre ser e não ser democrata. Aqueles homens tiveram o direito a ser julgados em Nuremberga», explica João Neto.


Meio bilhete de comboio para Auschwitz

Há dois anos, o Museu da Farmácia realizou uma conferência sobre o Holocausto, muito noticiada na comunicação social. Pouco depois, o director foi abordado, no supermercado perto de sua casa, por uma senhora que quis colocar no museu peças da sua família de origem judaica. Um pedaço do rótulo do químico Zyklon B, meio bilhete de comboio para Auschwitz e um fragmento de tecido da farda de um prisioneiro. Pequenos objectos guardados para provar ao mundo que o horror tinha de facto acontecido.


Fragmento da farda de um prisioneiro de campo nazi

O museu tem à sua guarda outros objectos relacionados com a Segunda Guerra Mundial. Mochilas do desembarque na Normandia, a farmácia portátil da enfermeira de Adolf Hitler, o desenho de um soldado inglês, prisioneiro do exército japonês. «Sendo este um museu de História Universal, sobre a Farmácia e a Saúde, deve ter objectos que retratem todos os momentos importantes da História da Humanidade», justifica o director.

A colecção do Museu da Farmácia sobre o Holocausto foi reconhecida, em Maio, com o prémio “Menção Especial” da Associação Portuguesa de Museologia. O prémio distinguiu os museus não militares e outras instituições, como os arquivos, cujas colecções sobre esta época histórica garantem que «o sofrimento causado a milhões de pessoas não será esquecido».


«Falar de 1939 é lembrar que hoje em dia existem refugiados. Os museus não podem ficar à parte deste grito pela liberdade e pela democracia», declara o director do Museu da Farmácia

Passam agora 80 anos do início da Segunda Guerra Mundial. Três gerações depois, os mais novos olham o que se passou como «um romance». Importa não esquecer. «A intolerância que hoje estamos a viver põe em causa a democracia e os seus valores. Aumenta o risco que a História se repita», alerta João Neto. E exemplifica com a indiferença com que os refugiados de hoje são vistos. «Falar de 1939 é lembrar que hoje em dia existem refugiados. Os museus não podem ficar à parte deste grito pela liberdade e pela democracia».

São cada vez menos os sobreviventes do Holocausto que podem contar de viva voz aquilo por que passaram. Em breve, não restará nenhum. Para o historiador, os museus funcionam como «estafetas da História». Cada objecto de uma colecção vale, mais do que como peça de arte, como transmissor do conhecimento. São objectos vivos, originais. «Nada se compara à reacção que as pessoas têm quando vêem aqueles objectos. Quando deixamos nas pessoas mais do que um sentimento efémero, passamos a fazer parte da sua história. É isso que queremos».
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