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7 dezembro 2020
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de José Pedro Tomaz Fotografia de José Pedro Tomaz

A farmacêutica sem amarras

​​Anita libertou-se no dia em que deixou de esconder a sua doença rara.​

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Tremor essencial. É este o nome da doença com que Anita Oliveira aprendeu a conviver desde cedo. Pronunciá-lo em voz alta deixou de lhe trazer lágrimas aos olhos no dia em que decidiu aceitar a doença. Os mesmos olhos rasgam-se hoje num sorriso ao falar da condição neurológica que a ensinou a viver o presente como uma dádiva.

Na adolescência apareceram os primeiros sinais daquela que viria a ser uma autêntica montanha-russa de sentimentos. As mãos e pernas que tremiam descontroladamente a cada movimento denunciavam o diagnóstico escondido. E as tarefas mais mundanas tornavam-se motivo de ansiedade, raiva e medo.

Por impulso dos pais, seguiram-se anos de exames, médicos e consultas, todos eles inconclusivos. «O monstro», que na altura controlava a sua vida, continuava sem nome, sem causa. E as suas dúvidas sem resposta. «Eu questionava-me: ˝Porquê eu? ̏».

Farmacêutica de profissão, Anita escolheu dedicar a sua vida a cuidar da saúde dos outros. E, durante o curso, muitas foram as vezes em que o medo de falhar veio ao de cima. «Algumas técnicas laboratoriais eram bastante minuciosas e os materiais muito frágeis», explica Anita. A doença obrigou-a a adaptar-se, mas nunca a impediu de seguir os seus sonhos. «Tive de repetir alguns trabalhos duas, três vezes, para conseguir acabá-los com o objectivo que pretendia. E, ao meu ritmo, consegui sempre».


Por medo de ser tratada de forma diferente, Anita escondeu a sua doença muitas vezes

Por essa altura, começou a notar um agravamento nos tremores. Os olhares curiosos eram seguidos de perguntas inconvenientes. «Os meus colegas reparavam que eu tremia e perguntavam-me o que se passava, porque é que eu estava nervosa», recorda. A ansiedade e o nervosismo, garante, pioram os sintomas. «Isso cria um sentimento constante de vergonha e a necessidade de esconder o problema».

Por medo de ser tratada de forma diferente, na primeira farmácia onde trabalhou não quis que soubessem da sua condição. E viveu com medo: «Medo de deixar cair e estragar os materiais mais frágeis, medo de ter de fazer uma entrega com o carro da farmácia. Medo de tremer, medo de que me vissem tremer».

O «monstro», contudo, não podia ser silenciado. «As pessoas perguntavam-se se estava tudo bem, diziam que não era preciso tremer». Os tremores aumentavam ao ritmo da vergonha. Apesar disso, a «doutora que treme», como foi apelidada, continuava a fazer o seu trabalho com a mesma qualidade da restante equipa.

A correria aos médicos teve fim no início deste ano, quando finalmente encontrou a pessoa que lhe viria a dar as respostas que procurava – não sem antes a desafiar. Com a ajuda da nova médica, percebeu que o tremor essencial se caracteriza sobretudo pelos tremores de movimento: gestos como segurar um objecto com o braço levantado ou fazer o ponto de embraiagem durante a condução. No entanto, Anita apresentava também sinais de tremor involuntário de repouso, um sintoma característico da doença de Parkinson.

«Quando a minha médica sugeriu que fizesse um exame para descartar essa hipótese, o meu mundo desabou», conta, emocionada. A possibilidade de poder vir a ser diagnosticada com uma doença degenerativa assolou-a. «Foi aí que levei com o “balde de água fria” de que tanto precisava».

Depois de semanas a adiar o exame, foi com a força da família e do namorado que ganhou coragem para o enfrentar. Quando o resultado negativo chegou, trouxe consigo a esperança. «Foi o melhor dia da minha vida. Abriu-me os olhos para o valor das mais pequenas coisas,
que eu antes não via».

O caminho até à aceitação raramente é linear. «Agora consigo olhar para trás e perceber que nada do que aconteceu foi por acaso», confessa a farmacêutica. «E olho com gratidão para tudo o que aprendi. Por tudo o que fui capaz de superar».


Anita gosta de se focar no presente, vivendo um dia de cada vez

Aos 29 anos, a doença deixou finalmente de assombrar a sua vida. «Antes não era capaz de dizer o nome da minha doença. Só de ouvir a palavra chorava». Hoje o nome já não a assusta, muito menos a controla. Os medicamentos ajudam a aliviar os sintomas e, depois de anos a explorar todo o tipo de estratégias, Anita encontrou uma rotina que lhe permite aproveitar os dias, um de cada vez.

«Quando acordo, gosto de escrever no meu caderno tudo aquilo que agradeço», explica. A caminho do trabalho, o tempo vai passando entre cantorias ao som da rádio e pensamentos optimistas. «Pensar que o dia vai ser espectacular já é meio caminho andado», diz a sorrir.


Com o passar do tempo, a farmacêutica aprendeu técnicas que a ajudam a controlar os tremores 

Na farmácia onde agora trabalha, já não há espaço para segredos. Ao balcão foi aprendendo alguns truques para minimizar os tremores. «Tentar manter sempre os braços apoiados faz com que não estejam contra a gravidade e isso ajuda», conta. Durante o atendimento, as conversas com os utentes também lhe permitem abstrair-se. «Muitas pessoas vão à farmácia só para terem a nossa companhia».

A doença que tantas vezes a desafiou deu-lhe também um novo propósito: ajudar quem passa pelo mesmo. Por isso, criou a página de Facebook “Viver com TE”, onde partilha a sua experiência e tenta criar um fórum de doentes com tremor essencial. «No meu processo tive muita dificuldade em encontrar grupos de apoio para pessoas como eu. Espero com esta iniciativa conseguir mudar isso».


A meditação ajuda-a a manter-se calma e a enfrentar a vida com optimismo

Focada em viver o presente, Anita é ambiciosa, mas não perde muito tempo a planear o futuro. Em vez disso, tem como lema fazer sempre coisas que nunca fez: «Gosto de ir a sítios onde nunca fui, descobrir novas culturas ou fazer formações em áreas que não conheço».

«Eu tenho tremor essencial», pronuncia, sorridente. «Mas ele é que tem de se adaptar a mim e não eu a ele. Ele é só uma parte de mim. Ele não sou eu».


“Tudo se transforma” é um dos lemas da farmacêutica, que a ajudam a recordar o que aprendeu com os desafios do dia-a-dia

A aceitação é libertadora. Por isso, Anita já não tem medo de ter medo, nem vergonha de ter vergonha. Não tem medo de tremer. Na vida, como na natureza, tudo se transforma. Anita é agora livre para voar.

 


​Agrade​cimentos: Fundação de Serralves.

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