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12 outubro 2020
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira

A enfermeira atenta

​​​Aos 17 anos, Rafaela superou o Linfoma de Hodgkin.

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Rafaela está quase sempre a sorrir. Tem a leveza dos 25 anos escrita no rosto emoldurado por longos cabelos castanhos e um olhar terno, feliz. Mesmo ao recordar os momentos mais duros. Como quando um «altinho na virilha» aparentemente inofensivo se transformou numa doença estranha, cujo significado desconhecia: Linfoma de Hodgkin, um cancro no sistema linfático. É com o mesmo olhar doce que lembra o tempo passado nos cuidados intensivos após meses de tratamentos, por conta de uma pneumonia provocada por uma bactéria hospitalar.

Estava no 12º. ano do ensino secundário, em Beja, a cidade onde vive desde bebé por conta da transferência do pai, militar de carreira, quando a sua vida foi interrompida. Tinha 17 anos e o mundo inteiro à espera de que cumprisse os seus sonhos.

Filha única, era a menina dos olhos dos pais. Ao mesmo tempo, teve a sorte de viver uma meninice rodeada por uma família grande de tios e primos. «Sempre nos juntámos muito na Vidigueira, aqui perto, em casa de uma tia. Nas alturas de festa reunia-me com os meus primos lá». O resto do tempo era passado com os pais.


O Parque da Cidade de Beja é o lugar das memórias mais queridas da infância da enfermeira

O Parque da Cidade de Beja era lugar de eleição da família. «Passava grande parte do meu tempo aqui com os meus pais». Os olhos brilham quando recorda esses dias. «Havia um pónei, eu adorava! Também dávamos voltas de barco no lago. Era muito giro».

A entrada na escola cimentou ainda mais a relação especial com o parque. «É perto da escola e vínhamos muitas vezes fazer actividades. Fantoches de pasta de papel, brincar na casa do lago».

Tudo corria bem até àquele dia 13 de Julho, data do aniversário da mãe. «A minha mãe tirou esse dia para estar comigo e aproveitamos para ir buscar os resultados das análises pedidas pela médica de família, por causa do altinho na virilha», conta.

Perante uma alteração nos resultados, mãe e filha voltaram de imediato ao consultório. O veredicto da médica foi muito claro: «Falou num cancro tipo leucemia».

Rafaela sentiu o chão a fugir-lhe. Invadiu-a um calafrio a dar conta do medo, da desorientação. «Senti que o meu mundo tinha desabado, já não ia concretizar os meus sonhos. Foi um choque muito grande».

Passou pouco mais de um mês quando a ansiedade começou a ceder à esperança e começou a ser seguida no serviço de oncologia do hospital de Beja. A médica Ana Montalvão anunciou que o linfoma fora descoberto numa fase inicial. «Apesar de estar no estádio 2 e já ter sintomas, disse-me que os prognósticos para este tipo de cancro eram muito bons». Melhor ainda, havia uma grande hipótese de cura.

Rafaela agarrou-se aos sonhos por cumprir: ir para a universidade e tornar-se enfermeira para ajudar quem dela precisasse. Também adoptou uma estratégia de força. Sempre assumiu ter um problema de saúde, mas nunca lhe chamou cancro. «Era uma doença e ia passar, como outra qualquer».

Entre a incerteza e o início dos tratamentos, passou pouco mais de um mês. «Tive de fazer uma biopsia, mas já havia certezas e, por isso, comecei logo a quimioterapia a 23 de Agosto».

Nesse mesmo dia, fez uma punção lombar para averiguar se o cancro não se tinha espalhado por outros órgãos. De novo boas notícias, tinha a medula intacta. Entre Agosto e Setembro, conseguiu conciliar os estudos do liceu com os ciclos de quimioterapia, em segundas-feiras alternadas. «Calhou bem. Eram os dias da semana em que não tinha aulas».

Dava entrada no hospital por volta das 8h30 da manhã, esperava o resultado das análises feitas no dia anterior, e ficava até às 16h30.

Em todo o processo, confessa, «o mais complicado foi a perda de cabelo». Mas também teve de suportar as náuseas dos dias seguintes e o inchaço provocado pela quimioterapia.


Fotografia de Rafaela no tempo em que os tratamentos lhe fizeram cair o cabelo

Nessa altura, valeu-lhe o apoio dos amigos que, por sorte, estavam na sua turma. «Protegiam-me imenso, andavam sempre comigo, a perguntar se precisava de alguma coisa». Quando foi rapar o cabelo, o grupo acompanhou-a.

Também a ajudou Rita, uma prima que vencera um cancro da mama. «Emprestou-me a peruca dela e dizia-me: “O que estás a sentir é normal. Vai fazer compras, é uma boa terapia”».

Pouco antes de terminar a quimioterapia, novo teste a sua coragem. Começou com uma tosse chata, insidiosa, que acabou por se arrastar durante um mês. A médica ignorou as suas queixas. Associou-as a uma alergia aos tratamentos, frequente em doentes oncológicos.

Até que, numa noite de Dezembro, Rafaela deixou de respirar. «Fiquei roxa, tive de ir de ambulância para o hospital. Para mim, esses dias foram os piores de sempre», recorda. Acabou por ficar internada um mês.

A consequência menos feliz dessa fase foi ter de repetir o 12.º ano, devido às faltas às aulas por conta do tempo em que esteve internada.

Entretanto, as notícias começaram a ser cada vez melhores. O cancro desapareceu e Rafaela começou a concretizar os seus sonhos. Formou-se em Enfermagem e apaixonou-se. Actualmente, trabalha numa unidade de cuidados continuados em Ferreira do Alentejo, a 30 quilómetros de Beja. «Os idosos agradecem os nossos cuidados de uma forma muito especial», alegra-se a jovem profissional de saúde.


O sonho de Rafaela é ser enfermeira parteira. Acredita que vai lá chegar

Ter passado por uma situação tão complicada, acredita, ajuda muito no seu trabalho. «Especialmente na atenção aos pormenores quando as pessoas têm alguma queixa. Tento sempre valorizar aquilo que a pessoa me está a dizer e não ignorar». Mantém ainda o sonho de se tornar enfermeira parteira, desejo herdado de uma tia com quem sempre sentiu muita cumplicidade. «Hei-de conseguir», sorri ela.​​


Rafaela imaginou um casamento diferente. Escolheu o vestido em Janeiro e foi a sua sorte. A pandemia mudou a festa mas não impediu o sonho

No dia 12 de Setembro, casou-se com o melhor amigo do secundário. Ele vai-lhe repetindo que está tudo bem quando se aproximam os exames e lhe salta o coração dentro do peito. «Abraça-me e conforta-me sem dizer nada. Às vezes as palavras não são a melhor coisa que podemos dar a alguém. Ele conforta-me com gestos. Para mim, são o mais importante de tudo».

Oito anos depois, a possibilidade de Rafaela voltar a ter um linfoma tornou-se idêntica à de quem nunca teve a doença. «Senti um grande alívio passados cinco anos. Pensei: “Bom, já está. Agora nada me vai parar”».


A doença tornou-a mais forte. «Antes tinha medo de tudo. Agora, mesmo com medo, avanço»

A experiência tornou-a mais forte. «Antes, tinha medo de muita coisa. Agora, olho para uma dificuldade e, mesmo com medo, avanço. Se ultrapassei isto, consigo ultrapassar qualquer coisa.» Enquanto fala, o olhar mantém a ternura de menina, agora somada à firmeza de quem venceu uma guerra.

 

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