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19 novembro 2016
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

A cadeira voadora

​​José Carlos não pode andar. Mas faz rali e salta de pára-quedas. E prepara-se para o hipismo e canoagem.

«Quero viver a minha vida e, quando for velhinho e estiver no leito, dizer: “Valeu a pena, experimentei tudo”». O lema de José Carlos Pereira, de 44 anos, parcialmente paralisado dos braços e das pernas desde os 17, é, pode-se dizer, levado à letra. Gosta de «tudo o que seja radical». Assim, sem reservas.

E experimenta: no Verão passado, saltou de pára-quedas em Braga, há poucos meses participou na prova de rali da Rampa de Santa Luzia, em Viana do Castelo. Na busca por aventura, chegou mesmo a ponderar voar para a longínqua Nova Zelândia, porque gostava de experimentar bungee-jumping numa ponte. Só as longas horas de voo o dissuadiram de explorar, uma vez mais, os seus limites: «Não posso estar muito tempo sentado, fico com problemas de pele», explica.
 
Para acrescentar logo que há sempre novos grandes desafios para quem está numa cadeira de rodas: equitação, canoagem.

José Carlos, ou Zé, como é chamado pelos colegas do Hospital Conde de Bertiandos, em Ponte de Lima, onde trabalha há 22 anos, utiliza o bom humor e a coragem de levar a vida com leveza.

O choque de perceber que nunca mais iria andar está, afinal, a mais de 26 anos de distância, quando ficou paraparético, ou seja, parcialmente paralisado dos braços e das pernas. Era então apenas um adolescente atlético, que gostava de impressionar.

«Só me lembro de acordar do coma no [hospital de] São João, e perguntar “Onde é que eu estou?”. “Está no hospital, no Porto”. Mesmo assim, não assimilei logo a situação, não pensamos que vamos ficar assim toda a vida. Só passado algum tempo é que perguntei a um enfermeiro amigo, o Miguel, o que é que se passava realmente. E ele perguntou: “Queres saber mesmo?”. Sentou-se à minha beira, estivemos a conversar, e… quando percebi, claro que chorei baba e ranho a noite toda», recorda.

Mesmo assim, preferiu acreditar num milagre, recusou aceitar que ia ficar numa cadeira de rodas para sempre na sequência do traumatismo  vertebro-medular - fracturou a C5 e a C6 – que sofrera pouco tempo antes, quando mergulhou no rio Lima e bateu com a cabeça.

No dia do acidente, decidira sair com os cães para dar um mergulho, a poucos metros de casa, ainda antes do almoço. 

Era domingo, um dia quente de Junho. «A dar um mergulho, bati com a cabeça no fundo, provavelmente. Depois saí do rio, ainda andava. Sentei-me com um colega e disse-lhe: “Não me aleijei”. Voltei a mergulhar. Fui encontrado já a boiar».

Entrara em coma dentro de água e foi tratado como afogado. «Estava lá uma enfermeira que me fez os primeiros socorros, como se fosse um afogamento, não me imobilizaram como se faz hoje em dia. Chegaram os bombeiros, levaram-me para o hospital de Ponte de Lima, daí para Braga, de Braga para o Porto. E só no dia a seguir fizeram exames e verificaram que tinha a coluna partida, ou seja, já não havia nada a fazer… só tentar recuperar ao máximo».

Nos oito meses que passou no Hospital de São João, não fez «um dia de fisioterapia», lamenta. «Só mexia o pescoço». Passados alguns dias, começou a recuperar a força dos braços, a ter sensibilidade nas mãos, nos pés. «Mas os médicos chegavam lá e não acreditavam que eu ia recuperar».
 
José Carlos, porém, recusou o veredicto médico. Gosta de conseguir fazer o que lhe dizem que não é capaz. E «somos sempre imortais aos 17 anos», como o próprio diz.

De que forma aprendeu a viver com a nova condição? Com a ajuda dos companheiros, tanto do São João, como do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, onde fez fisioterapia durante vários meses. «Lá dentro éramos todos iguais».

Mas foi a família, sobretudo a mãe, Francelina, hoje na primavera dos seus 82 anos, o «verdadeiro pilar». O pai, o irmão gémeo e as duas irmãs também foram fundamentais na recuperação. 

Todos se uniram: «Uma das minhas sobrinhas escondia-se debaixo da minha cama na hora da visita. Passaram 26 anos e hoje é cardiologista! Nunca deixei de ter o apoio deles, uma visita. Costumo dizer que eles são a minha força e eu sou a força deles».

O facto de precisar de ajuda não o entristece, é antes visto com a lente da gratidão e esperança. Afinal, «limitações temos todos». José explica: «Sou muito mimado.

Como nós dependemos mais dos outros, também há uma cumplicidade maior».

Em termos profissionais, sente-se realizado e reconhecido. Começar a trabalhar como telefonista no Hospital Conde de Bertiandos (actual Unidade Local de Saúde do Alto Minho), poucos anos após o acidente, foi fundamental para a sua auto-estima, garante: «Comecei a lidar com pessoas, a pensar que era útil. Já olhavam para mim e pensavam: “Afinal, ele consegue. Tem um futuro, tem perspectivas”». Entretanto, formou-se e conseguiu mesmo tornar-se responsável pela gestão dos Sistemas de Informação e Comunicação daquela Unidade Local de Saúde.

Hoje, José sabe que «nada se perde, tudo se transforma», como mostrou Lavoisier. Como arrisca ele com o seu bom humor costumeiro, «Talvez tenha conseguido coisas sentado numa cadeira de rodas que não conseguiria se estivesse de pé». Quem sabe? A fragilidade pode mesmo transformar-se em força. «É normal que as pessoas olhem para nós e pensem que somos diferentes – sou mesmo diferente. E tenho uma vida diferente. Mas tenho vida!» 
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