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18 julho 2018
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira

A bela maldição de Vénus

​​A terra encantada renasce das cinzas.

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Pedrógão Grande aparece ao longe, envolto num mar de verde, o tom dos vários pincéis escolhidos pela Natureza para cobrir as encostas que desembocam no vale do rio Zêzere.

Descem, em declive soberbo e perfeito, até às águas límpidas do leito, pincelando carvalhos, oliveiras, sobreiros, giestas, estevas, urze. Aqui e ali, o vermelho dos medronheiros selvagens. Granitos e xistos incrustam as encostas. O ar está leve, límpido.

Generosas, as águas do Zêzere oferecem duas paisagens. De um lado, o grande lago beija a terra e conquista-a para si, espelhando o céu inteiro na albufeira do Cabril. Logo a seguir à enorme barragem, uma das maiores do país, o curso de água doce serpenteia estreito pela montanha, seguindo sempre a seus pés, em perpétua intimidade.


A Barragem do Cabril, sobre o Zêzere, é uma das maiores do país​

Por cima, uma ave de rapina, provavelmente uma águia, rasga os céus, desvendando, sobre o monte, a pequena vila de Pedrógão Grande.

«Esta é uma zona que transmite a grande beleza que tem Pedrógão Grande e arredores», apresenta Carlos Pires, director-técnico da Farmácia Baeta Rebelo. Na verdade, assevera, nestas terras é «a beleza natural a imperar ». O olhar confirma-o.

Afável e bem-disposto, o guia mostra a ponte filipina, num dos miradouros próximos da barragem do Cabril. Até recentemente, conta, «era a única ligação entre Pedrógão Grande e Pedrógão Pequeno». Em pedra, e coberta por vegetação, a pequena ponte integra alguns trilhos pedestres, pensados para descobrir os segredos desta terra. Apenas nos anos 50 do século XX foi substituída em função – mas não em beleza.

A estrada segue sobre a montanha, até chegar a Pedrógão Grande. Cerca de duas mil pessoas habitam a vila antiga, que recebeu foral há mais de 500 anos. Mas a história que testemunhou o edificado branco é bem anterior. E a Igreja Matriz, monumento nacional em torno do qual nasceu o centro do povoado há mais de 800 anos, está lá para o mostrar.

A Igreja Matriz e a sua Torre do Relógio são marcas indeléveis da vila, vêem-se de longe. O templo mantém o estilo românico do séc. XII. Com uma capela-mor abobadada e uma nave central de dois andares, o interior assinala o estilo manuelino.


Capela de São Sebastião, em Pedrógão Grande​

Um estilo guardado também na pequena aldeia de Troviscais Cimeiros, bem próxima. É aí que fica, na Villa Isaura, o Museu da República e Maçonaria, que tem o filho da terra Aires Henriques aos comandos.

Do período manuelino, as pedras que compõem o edifício que alberga o surpreendente museu saíram do centro histórico de Pedrógão Grande. «Têm 880 anos e contam a história de Pedrógão, que existiu antes de Portugal se tornar uma nação independente», contará, mais tarde, Aires Henriques.

Situada no ponto mais alto da vila, ao lado da igreja, está a Torre do Relógio, onde tudo começou. Há uma lenda relacionada com esse início longínquo, tempo de encantamentos e mistérios. É a lenda da Princesa Peralta e é Aires Henriques, que acabou de escrever uma monografia sobre Pedrógão Grande, quem a conta. A lenda, introduz, surge em 1629, num livro chamado “Miscelânea do sítio de Nossa Senhora da Luz do Pedrógão Grande”.

Começa na desaparecida Conímbriga, nos anos 500 a.C. Perante o assédio e os assaltos que causaram a destruição de Conímbriga, o seu senhor esconde a filha, a princesa Peralta, num castelo da Lousã, num lugar inacessível entre serras, e parte para África para reunir esforços com o intuito de recuperar o seu reino.

A filha, Peralta, de uma beleza admirável, é assediada por príncipes da zona. Em Trevim, na serra, acaba por ser convencida por um mago de que o pai está a regressar pelo lado oriental. Ansiosa por assegurar-se do bem-estar do progenitor, a jovem princesa resolve atravessar a serra, a partir de Condeixa, Miranda do Corvo, Lousã, Castanheira. E começam os problemas. Tamanha beleza não passa despercebida – nem aos deuses.

«Em Castanheira, a deusa Vénus, invejosa da beleza de Peralta, resolve castigar todos os que a louvam. E transforma tudo em fontes, rios, ribeiras, penhascos. A princesa é transformada em ribeira de Pera», conta Aires Henriques. «Vénus retira-lhe o alta para que ninguém a recorde com carinho ou se lembre da sua beleza».

O castigo da bela e impiedosa Vénus vai mais longe. Transforma também um dos príncipes, odiado pela princesa, em rio Zêzere, colocando-os a encontrar-se para a eternidade. 
«Há outros príncipes da família dos Petrónios que, perdidamente enamorados, lutam pela princesa. Os que vencem a batalha ficam na margem direita do rio, e os outros, perdedores, na esquerda. Assim nascem Pedrógão Grande e Pedrógão Pequeno que, apesar dos malefícios de Vénus, vão sendo povoados ao longo dos séculos».

Saindo do centro da vila e deixando a lenda de Peralta para trás, percorrendo o casario branco e térreo, chega-se ao Jardim da Devesa, famoso pelos seus enormes e antigos carvalhos. «O jardim é muito rico em espécies diferentes. Temos os famosos carvalhos da Devesa, que são árvores muito antigas. E muitas outras plantas que conferem uma grande diversidade ao jardim», apresenta, orgulhoso, Carlos Pires. O jardim, continua o anfitrião, «está muito bem cuidado e atrai muita gente, durante todo o ano. Nos dias de calor, os bancos estão preenchidos por pessoas que estão a descansar, fazer croché, pôr a conversa em dia».


Em dias quentes, o Jardim da Devesa acolhe pessoas de todas as idades

Bem perto, fica a Farmácia Baeta Rebelo, que prestou auxílio à população durante os incêndios de há um ano. «As pessoas estão ainda a recuperar», conta Carlos Pires. 

Apesar disso, há algo de extraordinariamente forte nestas gentes que acolhem quem chega com genuína alegria. «Somos bons anfitriões, gostamos muito de receber as pessoas, fazemos tudo para as tornar bem-vindas, para se sentirem em casa», diz o cicerone.

Passamos a manhã do dia seguinte numa aldeia próxima: Troviscais Cimeiros, à descoberta de um dos grandes segredos da zona: o Museu da República e Maçonaria. Aberto desde 2012, ano em que foi celebrado um protocolo com o Grande Oriente Lusitano, o museu conta a História da República e da Maçonaria a partir de 1880. É um dos três museus de toda a Península Ibérica a fazê-lo e dono de um imenso espólio.

«A República tem, logo no seu início, Casimiro Figueira, natural de Pedrógão Pequeno, ligado ao sistema das escolas móveis. Foi financiado por outro grande pedroguense, João Jacinto Fernandes. Estiveram na origem do ensino popular e da instrução pública», conta Aires Henriques. Foi com as escolas móveis que a República começou por lutar contra o analfabetismo do povo.

Também a Maçonaria «traz com ela as grandes ideias do progresso»: «Começa por ser contra o absolutismo e defender o liberalismo», explica o guia, visivelmente apaixonado pelo tema, a que dedicou uma vida inteira.

Estar neste museu privado traz uma oportunidade de desvendar um pouco dos mistérios da Maçonaria. «Traz duas coisas essenciais. Uma é evitar que se fale de política partidária. Fala-se de política, mas não de política partidária. O que está acima das coisas é aquilo que é importante, sobretudo a liberdade», descreve Aires Henriques. «Não se discute religiões, mas princípios: a fraternidade, a liberdade, a justiça, a tolerância, o respeito pelo próximo», continua.

Perdeu conta às peças do acervo, reunidas ao longo de mais de 20 anos de vida. Há um conjunto de que gosta especialmente. «A Maçonaria foi sempre de algum modo sigilosa, mas sobretudo a partir do Estado Novo, em 1935, porque foi proibida em Portugal».

O conjunto agora exposto no museu conta a história maçónica de Joaquim Oliveira Simões, grão-mestre adjunto nesses anos 30. «Este acervo é importantíssimo porque estava disperso, andou por vários locais e um dia foi reunido», congratula-se Aires Henriques.


Aires Henriques é o director do Museu da República e Maçonaria, em Troviscais Cimeiros​

No que diz respeito à República, destacam-se duas peças, diz o cicerone: uma estatueta de corpo inteiro da República, com cerca de 60 centímetros, «muito bela, feita na escola das Caldas da Rainha, com um grande rigor, com um grande sentido patriótico e artístico».

Outra peça fundamental é um jarrão de Massarelos, com a figura de Rodrigues de Freitas, primeiro deputado republicano ao parlamento monárquico, em 1885.
De regresso ao século XXI, é com a Princesa Peralta ou ribeira de Pera, escondida por uma espécie de floresta encantada, com lagares e moinhos nas suas margens, que passamos a tarde. Antes, o almoço: um repasto imperdível no Lago Verde, debruçado sobre o seu amante indesejado, o Zêzere, composto pela tradicional sopa de peixe e pelos maranhos.

Na aldeia do Mosteiro, parte da Rede das Aldeias do Xisto, está a bela e amaldiçoada princesa, a ribeira de Pera, contida pela represa da praia fluvial do Mosteiro. O ar parece ainda mais puro e límpido. Torna tudo mais leve.


Praia fluvial do Mosteiro, numa represa sobre a bela e límpida ribeira de Pera​​​

E também aqui descobrimos um projecto de recuperação único, as árvores de afectos. «Surgiu depois dos incêndios, com o intuito de ajudar na recuperação desta zona, pela mão de um empresário local», conta Carlos Pires. Trata-se do apadrinhamento de uma árvore, autóctone ou de fruto. O padrinho deve voltar pelo menos duas vezes por ano, durante um período de cinco anos, para visitar a sua árvore.

O regresso é o mais importante, diz o cicerone. «Essa é provavelmente a maior ajuda de que nós precisamos: que as pessoas visitem Pedrógão Grande e dêem novamente vida a uma zona tão bonita e que tem tudo para ser feliz». E para nos fazer felizes. Pedrógão fica na alma de quem a descobre.
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