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18 julho 2018
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Ricardo Meireles Fotografia de Ricardo Meireles

A arte de tratar com as mãos

​​​​​Autor de “História da Cirurgia” visita o Museu da Farmácia no Porto.

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Oriundo de uma família portuense de médicos e farmacêuticos, Fernando Reis Lima exerceu Medicina durante quase seis décadas. Em 2017, escreveu “História da Cirurgia” (edição da Modo de Ler). O livro é uma homenagem à especialidade da sua vida, a Cirurgia Geral, a que chama a «arte de tratar com as mãos». Trata-se, simultaneamente, de uma ciência e de uma arte. «Quando opera, o cirurgião trabalha com uma delicadeza que o caracteriza. Conhecemos muitas vezes um cirurgião pela incisão que fez, porque é uma arte», refere o antigo director de serviço do Hospital de São João.

Fernando Reis Lima defende a cooperação entre todas as profissões de saúde e encontrou no Museu da Farmácia no Porto argumentos para isso. «Os médicos, os farmacêuticos e os enfermeiros são servidores do ser humano que sofre de doença. Aqui encontramos um pouco do que fizeram, ao longo da História, todos aqueles que tratam da saúde». Graças a esta interligação de saberes, no Museu da Farmácia encontramos várias referências aos temas que Fernando Reis Lima trata na sua “História da Cirurgia”.


O Museu da Farmácia dá testemunho da História da Saúde e da interligação de saberes

Vêm da Pré-História os primeiros esforços do ser humano para combater a doença, com recurso a plantas medicinais e actos médicos, administrados por feiticeiros, que eram «farmacêuticos e médicos ao mesmo tempo». A primeira operação conhecida é a trepanação, que consiste na abertura de um ou mais buracos no crânio, realizada muitas vezes com intuito religioso, para curar a loucura ou até para melhorar a inteligência. «Os trépanos na Pré-História eram muitas vezes feitos para retirar fragmentos de osso, que eram usados como amuletos ou enfeites. Acreditava-se que tinham propriedades mágicas e conferiam a quem os usasse a valentia do indivíduo a quem pertenciam».


A primeira operação conhecida é a trepanação, que consiste na abertura de um ou mais buracos no crânio​

Ao longo dos tempos, foram sobretudo as guerras que fizeram evoluir a técnica cirúrgica, na tentativa de salvar soldados feridos. Apesar da evolução, a verdade é que «até 1600 a cirurgia era catastrófica». Ainda na Guerra da Crimeia, já no século XIX, quase todos os doentes operados morriam devido às infecções, conta o médico.


Instrumentos usados para efeitos cirúrgicos na época romana​

Fernando Reis Lima elege alguns momentos decisivos na História da cirurgia, ligados a inovações no conhecimento e na técnica. O primeiro, na Renascença, respeita ao estudo da anatomia, que permitiu aos médicos «fazerem tratamentos mais nobres, por saberem o que estavam a fazer». Outro, no início do século XVI, está associado ao cirurgião francês Ambroise Paré, considerado o ‘pai da cirurgia’. Descobriu a laqueação das artérias, que substituiu a laqueação pelo fogo, a qual era responsável por hemorragias fatais. Em meados do século XIX, o cirurgião britânico Joseph Lister introduz o fenol como agente anti-séptico, reduzindo drasticamente as infecções pós-operatórias.

Na Idade Média, a cirurgia era «uma arte não nobre, porque mexer no sangue era considerado algo ignóbil», explica Francisco Reis Lima. A cirurgia era considerada uma técnica bárbara e eram os barbeiros, chamados cirurgiões-barbeiros, que executavam as sangrias, suturas e operações. Usavam uma toga curta para se diferenciarem dos médicos, cuja toga chegava aos pés.

Ainda assim, «alguns eram muito hábeis e especializaram-se em determinadas artes, por exemplo operar hérnias».

Progressivamente, a cirurgia torna-se uma especialidade respeitada. Para a elevação da profissão ao nível dos restantes ramos da Medicina contribuiu o aparecimento de obras redigidas em francês, em substituição do latim, o que permitiu aos cirurgiões-barbeiros começarem a estudar. A criação, em 1800, do Royal College of Surgeons, em Londres, foi também um momento de prestígio para a profissão. Reconhecimento merecido, defende Fernando Reis Lima: «O cirurgião é um duplo médico: além de médico é um técnico capaz de operar com as próprias mãos».

Também o avanço da farmacologia deu um grande contributo ao desenvolvimento da cirurgia, em especial com a descoberta dos antibióticos, nomeadamente sulfonamidas e penicilina, e dos imunossupressores. «Devemos muito aos técnicos farmacêuticos e aos investigadores», reconhece o cirurgião.


O desenvolvimento da cirurgia deve muito ao avanço da farmacologia

Em Portugal, a cirurgia acompanhou os desenvolvimentos europeus, mas até muito tarde «o estado da arte era primitivo e lamentável», nas palavras do médico portuense. Por exemplo, só em 1758 passou a ser obrigatório aos cirurgiões saber ler e escrever. Hoje, a cirurgia em Portugal está ao nível da que se pratica nos países mais desenvolvidos, graças às trocas de experiências dos nossos médicos com o resto do mundo. «Temos cirurgiões virtuosos, capazes de executar as técnicas mais sofisticadas», garante.

Aos 83 anos, Fernando Reis Lima olha o futuro com optimismo. Já teve oportunidade de manipular um robot e ficou «encantado». «O robot é o futuro, mas um futuro para já muito caro», graceja. Acredita que a evolução da investigação vai permitir aos médicos actuarem cada vez mais de maneira preventiva, sendo a prevenção «o acto mais nobre da Medicina». Na sua opinião, o futuro da cirurgia está na técnica, na inteligência humana e na informatização. «A ciência humana não tem limites, estamos sempre a descobrir coisas novas».
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