Escrito no século XI pelo persa Avicena, o segundo volume da verdadeira enciclopédia inaugural de Medicina da História, o Cânone da Medicina, é um dos «pilares» do espólio do Museu da Farmácia, em Lisboa.
«Não é apenas um livro de ciência: é um livro que fundamenta o próprio espaço de farmácia. Informa o que é o farmacêutico, que tem de ser um profissional das ciências da vida», sublinha o director do Museu, João Neto.
Homem de ciência e de filosofia, Avicena, como ficou conhecido no Ocidente, viveu 57 anos (entre 980 e 1037), no coração do Império Persa. E ficou para a História como o sábio que compilou, pela primeira vez, os conhecimentos médicos e farmacológicos essenciais para interpretar e ser mais eficaz no combate à doença. Os 14 manuscritos – que serviriam de base a todo o conhecimento das ciências da Saúde até ao século XVIII.
O contexto em que viveu o também médico era propício. Entre o século VIII e o século XII, a zona onde hoje é a Palestina «era uma plataforma muito interessante do ponto de vista do conhecimento científico e do entrosamento entre os vários saberes», lembra João Neto. «Ali se encontravam os saberes da Índia e da China, através da Rota da Seda; o conhecimento árabe, do Império Persa; e, porque aquela zona é banhada pelo Mediterrâneo, o europeu, que congrega o conhecimento judaico. Jerusalém era o lugar onde se encontrava o mundo».
Quando surge Avicena, o mundo islâmico está, portanto, na vanguarda do conhecimento na área da saúde. «Os hospitais e as universidades estavam juntos, porque uniam a investigação com a experiência. A partir do século IX, os hospitais islâmicos já tinham zonas de separação de doenças, sobretudo as doenças contagiosas. E é Avicena que nos dá as explicações até do próprio contágio das doenças».
Avicena é um espírito curioso. «É, por exemplo, um dos primeiros a estabelecer uma relação entre questões de saúde mental e o seu tratamento através de medicamentos, da água e do local», refere o director, notando que esta é uma visão da farmácia islâmica: «A noção da importância de um bom ambiente para o tratamento».
No segundo volume do seu Cânone da Medicina, uma das obras mais importantes que escreveu, o cientista fez uma análise de 700 substâncias de um cariz farmacológico. «É bastante, em termos de conhecimento e saber.
Avicena faz uma união de várias interpretações e isso significa que o livro dele tem um conhecimento científico tão grande, tão importante, que se torna a base do conhecimento da Saúde até ao século XVIII. São poucos os livros e poucos os cientistas que vão perdurar tanto tempo. No século XVIII, surge uma nova arma que permite outra interpretação, o microscópio».
Há outro dado importante para contextualizar a peça exposta no Museu da Farmácia, em Lisboa, sublinha o mesmo responsável: «Escolhemos este livro por ser simbólico. Nesta altura, dá-se uma outra inovação, a passagem da seda para o papel. O mundo islâmico precisava de consolidar o seu conhecimento e esta nova textura permite-o».
Felizmente, o conhecimento árabe não ficou contido: veio para a Europa, «através das rotas e dos hospitais militares que estavam na Palestina e em Jerusalém, sobretudo os da Ordem Militar de São João de Jerusalém e os Teutónios, mais abertos».
No século XII, as obras de Avicena começam a ser traduzidas, primeiro para hebraico e depois para latim. O manuscrito patente no Museu, uma «peça essencial», é um original editado em latim precisamente nesse século.
Nele contam-se cerca de 700 substâncias terapêuticas, um tratado de venenos, e uma lista de receitas e preparações medicinais. Trata-se, precisa João Neto, de um volume em que «a Farmácia e a Medicina ficam unidas, com interpretações e método, o que o torna realmente importante».
Simultaneamente, na Europa, as farmácias começavam a ser fortemente regulamentadas pelo Estado e implementadas nas cidades, em locais a que a população pudesse recorrer em segurança. Recorde-se que, em plena Idade Média, as pessoas tinham uma esperança média de vida curta. Surgiram então, no século XII, as primeiras leis de regulamentação da profissão farmacêutica: «tinha de ser uma pessoa não da economia, mas da ciência, sobretudo uma pessoa das ciências da vida». Por isso, o Cânone da Medicina era uma obra fundamental para qualquer profissional de saúde.