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27 novembro 2017

Um pelo sonho, todas por ele

​​​​​​​​​Como as farmácias apoiaram a obra social de João Almiro.

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Foi Maria João, única filha biológica, a trazer para casa a primeira filha do coração de João Almiro. Chamava-se Bibi. Os pais, pobres diabos escravos do álcool, embebiam-lhe a chupeta em açúcar e bagaço, para que adormecesse e os deixasse a sós com o vício.

– Temos de cuidar dela, pai.

Bibi sofria de trissomia 21, ou mongolismo, como se dizia na época. Aos dois anos de idade ainda não apresentava a moleirinha fechada. O esófago, pelo contrário, parecia de um velho alcoólatra. 

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O amor foi a fórmula magistral que salvou Bibi.  Nos primeiros tempos, os seis irmãos Almiro faziam turnos para a alimentar. Uma colher de papa de cada vez, que a segunda já era impossível de suportar por aquele minúsculo estômago de porcelana profanada. Bibi cresceu contra todas as probabilidades científicas e em sentido contrário ao prognóstico dos médicos. Estava marcada para partir nalgumas semanas, no máximo davam-lhe uns meses de vida. Ela ficou, aprendeu a andar e a falar. O seu sorriso infantil encheu a casa até aos 43 anos. 

O encantamento de Bibi foi a matéria-prima da nova fábrica de João Almiro, de amor e dedicação sem limites aos outros. Uma certa noite, enquanto dormia sozinho, no andar de cima do laboratório de preparação de medicamentos, o farmacêutico sonhou com uma vida nova para todos os desgraçados.

– Um filho meu saía de casa, entravam dois ou três. Outro filho casava, saía de casa, entravam mais dois ou três.

Recebeu o sonho como a revelação de um sentido para a vida. Desatou a acolher em casa dezenas de crianças abandonadas, com fome em vez de família. Mas também inúmeros adultos nascidos ou caídos no lado errado da vida. Juízes de todo o país, de São João da Pesqueira a Oeiras, confiavam-lhe os casos mais difíceis. Tomou a seu cargo ladrões e assassinos em recuperação, vítimas de abandono e abusos sexuais, viciados no álcool e na droga, doentes do corpo, da mente e do espírito. Para manter esta excêntrica e fabulosa família unida, teve de sair da casa de família e instalar-se noutras, cada vez maiores, que logo se enchiam de gente e abarrotavam de amor. 

Em lugar de alguma vez trancar a porta, João Almiro sonhou em grande, à sua medida. Empenhou as suas economias na compra de um grande terreno, tendo por objectivo construir um grande edifício, com condições para instalar mais de cem pessoas. Era o Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Vale de Besteiros, mas decidiu que não gastaria um escudo da instituição. Até ali, triunfara economicamente sozinho, nas circunstâncias mais difíceis. Foi com sacrifício que aprendeu a pedir. Uma benemérita meteu-lhe na mão 50 mil contos, outra 40 mil. Convenceu arquitectos amigos a oferecerem-lhe um projecto «engraçado», com piscina, campos de futebol, refeitório, salas de jogos e de espectáculos.

 – Os miúdos até julgavam que viviam num hotel.

O Estado subsidiou a construção, com 97 mil contos, mas eram necessários 300 mil para levar a obra até ao fim. João Almiro tinha a seu cargo dezenas de pessoas, gastava por inteiro os 750 contos das reformas da farmácia e do laboratório, não podia meter mais dinheiro do próprio bolso. Foi nesse impasse que o farmacêutico de Campo de Besteiros se lembrou da rede de farmácias. Em 19 de Agosto de 199​4, à tarde, enviou um telefax à ANF, apresentando o projecto, que define a cultura de um homem, de distribuir rifas por todas as farmácias do país, para angariar fundos.

– Venho pedir o favor de nos fornecerem uma listagem, pelo mínimo preço possível, em papel autocolante.

A Direcção deliberou entregar as etiquetas com as moradas gratuitamente e ainda apadrinhar o projecto com uma circular às farmácias. Como o método resultou, cinco anos depois o associado de Campos de Besteiros endereçou à ANF um segundo pedido para distribuir rifas pelas farmácias, a tempo de fechar as contas da obra. No dia 11 de Setembro de 1999, o Convívio Jovem era inaugurado.

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– Foi com o dinheiro que as farmácias me deram, do país inteiro, até dos Açores e da Madeira, que eu fiz este edifício. Poucas me devolveram as rifas.

João Almiro era um homem profundamente reconhecido. Quinze anos depois, entrevistado para a Revista Farmácia Portuguesa, por ocasião dos 40 anos da ANF, insistiu num pedido:

– Não se esqueça de agradecer aos meus colegas. Por favor, diga-lhes que lhes estou muito reconhecido.

O Convívio Jovem arrancou com 25 raparigas, dos quatro aos 59 anos, e 65 rapazes, dos três aos 74 anos. Antes do fim do ano, seriam cem residentes, entre os quais três casais com os seus filhos, uma avó e uma neta, três homens em liberdade condicional, quatro esquizofrénicos, um cego e um surdo-mudo. A então vice-presidente da​ ANF, Maria da Luz Sequeira, ficou impressionada com o que viu na cerimónia da inauguração.

- Marcou-me como as crianças o amavam e idolatravam e eram correspondidas por ele.

João Almiro mantinha os adultos permanentemente ocupados. Todas as crianças frequentavam a escola. Nos tempos livres praticavam desporto. O farmacêutico inscrevia as suas equipas em muitos torneios desportivos.

– Todos os jovens precisam de se afirmar pela competição. Se não o fizerem pela positiva, afirmam-se pela negativa.

Aconselhava todos e premiava-os sempre que podia. Numas férias, os dirigentes da ANF cruzaram-se por acaso com ele num cruzeiro no Mediterrâneo, acompanhado pelos três adolescentes da instituição que tinham tido melhores notas no ensino secundário. Comportou-se como todos os pais carinhosos, que perguntam aos filhos se estão a gostar das férias. João Cordeiro, presidente histórico da ANF, lembra-se do impacto que aquele quadro causou entre os farmacêuticos embarcados.

– Era de um carinho, cuidado e ternura extremos, mas fazia aquilo com toda a discrição. P​ara ele era a normalidade. Era impressionante.

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No 10 de Junho de 2000, o Presidente da República, Jorge Sampaio, atribuiu a João Almiro a medalha de Grande Oficial da Ordem de Mérito. Dois anos depois, no dia dos seus anos, esforçou-se por conviver com meia classe política na inauguração das novas instalações do Labesfal. A sua relação com o Estado foi sempre tensa e desencantada. Teve de deixar o Convívio Jovem entregue à Segurança Social. Só lhe comparticipavam os rapazes, entre os seis e os 16 anos, e ele não admitia separar famílias, pôr adolescentes na rua ou fechar a porta a um adulto necessitado. Nunca aceitou a separação entre rapazes e raparigas. Só teve um caso de gravidez indesejada. Pediu avaliações sérias de resultados ao seu método, mas não obteve resposta.  Maria da Luz Sequeira guardou para sempre na memória o desabafo que lhe ouviu, abraçado a uma adolescente.

- Encontrei esta menina aos três anos, toda mordida pelos ratos. Era o que faltava deixá-la à porta.

Portugal descobriu-o nos últimos anos de vida. Um velho de muletas apareceu na televisão, à hora de jantar, a visitar ladrões e assassinos nas prisões e a viver com eles em casa. A reportagem da TVI, "Até Voares", acabou premiada pela UNESCO. 

No dia 15 de Outubro de 2015 recebeu as Insígnias da ANF.

– Atendendo ao notório exemplo de vida dedicada à profissão farmacêutica e ao bem-comum, sem interesses materiais, pelo seu elevado mérito e por ter contribuído de modo extraordinário para a valorização das actividades farmacêuticas no seio da sociedade, perfilhando o bem-fazer sem olhar a quem.

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João Almiro subiu ao palco. Confessou que já lhe custava falar, mas precisava de deixar aos farmacêuticos de todo o país duas palavras, a primeira das quais de «estímulo».

– Não parem! Estudem, estudem. A Universidade é maravilhosa, mas não fiquem por aí. Semeiem, semeiem. Não se arrependam de semear. Quem colhe, não interessa, colhe alguém que precisa.

A outra palavra foi «obrigado».
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