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4 novembro 2022
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de Eduardo Martins Fotografia de Eduardo Martins Vídeo de Nuno Santos Vídeo de Nuno Santos

Um excesso de natureza

​​​​​​​​​​​À descoberta dos recantos escondidos entre os socalcos do Douro e as escarpas do Corgo.​

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Do cimo do miradouro de São Cristóvão do Douro, montanhas recortadas de socalcos e oliveiras contornam o rio. «O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza».

Assim o descreveu Miguel Torga, natural de Sabrosa, na obra “Diário XII". «O maior poeta do Douro», pode ler-se na placa em sua homenagem. Perante «a beleza absoluta», exaltada pelo escritor, restam poucas dúvidas acerca dos motivos que, em 2001, levaram a UNESCO a declarar o Alto Douro Vinhateiro como Património da Humanidade.

Ali ao lado, na aldeia de Vilarinho de São Romão, a apanha da uva começa aos primeiros raios de sol de uma manhã quente de setembro. Fileira a fileira, o clique das tesouras de poda marca o ritmo da vindima.

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Nas videiras da Quinta do Beijo há mais de 60 castas, destinadas ao Vinho do Porto e aos vinhos de ​mesa

Entre os trabalhadores, gente local de todas as idades, há quem participe nas vindimas há uma vida. É o caso do veterano Manuel Jacinto, fadista de serviço, e dono de uma voz profunda e afinada como poucas. A esposa, Adélia, de 66 anos, está nestas andanças desde os 15. «Fui aqui criada». Isso vê-se na genica com que se move de posto em posto.

Entre os corredores, tradicionais cestos de palha repletos de cachos aguardam a chegada do trator que os transporta até à entrada da vinha. Estacionado em frente à placa “Caminho dos Picles", um pequeno camião azul acumula o trabalho do dia. Nas portas, a inscrição Quinta do Beijo denuncia o destino final destes bagos, que em breve farão as delícias dos apreciadores.

Foi de uma metáfora entre uma ave e os vitivinicultores que nasceu o nome da quinta. «O beija-flor vai beijar as flores para extrair o néctar e nós, produtores de vinho, beijamos as videiras para trazer o vinho para a garrafa», conta o sócio-gerente João Monteiro.

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«O segredo de um bom vinho é o amor que temos pela região», afirma o sócio-gerente da Quinta do Beijo

Nesta quinta centenária, localizada em Celeirós do Douro, há turistas que chegam diariamente de todos os cantos do mundo para conhecer os segredos da arte da produção do vinho. O enoturismo é uma aposta recente e reúne cada vez mais adeptos.

Dedicada originalmente ao V​inho do Porto, há oito anos a família passou a apostar também nos vinhos de mesa. João explica que o processo produtivo, embora mais modernizado, ainda inclui alguns métodos tradicionais, como a pisa a pé das uvas. E garante: «O segredo de um bom vinho é o amor que temos pela região e pela nossa arte».

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A adega centenária da Quinta do Beijo está aberta aos visitantes desde 2017

Cátia Cunha, técnica de radioterapia no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, não se cansa de recomendar a visita: «Recebem-nos como se fossemos da família e dão-nos a provar um bocadinho da história da região».

Natural de Vila das Aves, no distrito do Porto, e a viver em Vila Real há 14 anos, a profissional de saúde de 36 anos confessa que foi parar à cidade por acaso. «Surgiu esta oportunidade de trabalho e, sem pensar muito, aceitei», recorda. Depois de constituir família, apaixonou-se pela qualidade de vida que o concelho transmontano lhe proporciona. Hoje, não o trocaria por nada.

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​Natural do Porto, Cátia Cunha apaixonou-se pela qualidade de vida que Vila Real lhe oferece

A Casa de Mateus é um dos seus locais de eleição para um passeio demorado pelos grandiosos jardins históricos. «É o ícone cultural da cidade». Classificada como Monumento Nacional desde 1910, a casa do século XVIII é considerada um dos mais emblemáticos exemplares do estilo barroco.

Complementado por uma capela e uma adega, o espaço conta a história do morgadio de Mateus e do domínio da família de nobres pelas terras em redor, que durante décadas determinou grande parte da vida económica de Vila Real.

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A Casa de Mateus é um dos mais emblemáticos exemplos do estilo barroco

«Vir a Mateus é testemunhar uma espécie de viagem no tempo», declara o assessor da direção da Fundação da Casa de Mateus, José Luís Ferreira. O espólio à vista durante a visita pelos salões do palácio é o resultado da «história das personagens da família ao longo dos séculos».

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«Vir a Mateus é testemunha uma espécie de viagem no tempo», afirma o assessor da direção da Fundação da Casa de Mateus

Na biblioteca, entre a coleção impressionante de livros dos últimos 300 anos, habita um exemplar único da edição ilustrada d'“Os Lusíadas". Encomendada pelo 5.º morgado de Mateus na primeira metade do século XIX, a Edição Monumental da obra pretendia «eternizar a identidade portuguesa», numa altura em que «as tropas napoleónicas ameaçavam a integridade nacional». No coração de Vila Real há recantos que merecem a visita. Na Vila Velha, um miradouro suspenso sobre a cidade oferece um vislumbre da paisagem natural que a envolve. Ali terminam os Percursos Naturais do Corgo, com início no Parque Corgo. O percurso de passadiços, inaugurado há um ano, convida à descoberta das zonas mais escarpadas do rio, até então inacessíveis.

 


Numa das principais ruas do centro histórico, nasceu, em 2018, a Loja do Covilhete. Lugar predileto de Cátia para um almoço tradicional, o restaurante homenageia um dos mais famosos produtos da gastronomia vila-realense.

No rés-do-chão, as paredes enfeitadas de quadros contam a história do covilhete. Os balcões exibem as mais aclamadas iguarias da região, com destaque para as cristas de galo, um doce conventual recheado com creme de ovos e amêndoa. «É ótimo», descreve Cátia.

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«Sentia que o covilhete merecia este destaque», confessa Mário Rodrigues, proprietário da Loja do Covilhete

Com origem há mais de 100 anos, a empada de carne deve o seu nome à forma de barro negro, típica da aldeia de Bisalhães. O pastel, recheado com picado de vitela maronesa e de fumeiro, distingue-se pela massa semifolhada e pelo formato característico da tampa.

O proprietário, Mário Rodrigues, explica que o espaço nasceu da vontade de «cimentar o covilhete como produto de excelência e levá-lo a qualquer parte do mundo». O sonho está cada vez mais próximo, depois da recente abertura da fábrica da mesma marca, onde o produto é confecionado com receita própria e pré-congelado. «O objetivo é disponibilizá-lo em todo o país, até ao final do ano».

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A recém-renovada Avenida Carvalho Araújo convida a descobrir a pé alguns dos monumentos históricos do centro

Vila Real é Natureza, história e tradição. Nas ruas pisadas pelas gerações de hoje, há ainda memória dos tempos em que as “covilheteiras" vendiam as iguarias em cestos cobertos por panos de linho, à porta da Sé. Do vinho a fermentar nos lagares depois da pisa a pé, embalado pelas danças e cantorias da festa das vindimas. Das viagens estrada abaixo até à Régua, com o Douro como pano de fundo, num «excesso de natureza» capaz de inspirar até o maior dos poetas.​




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