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2 março 2023
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de Diogo Alves Vídeo de Diogo Alves

Transformar a dor em amor

​​​​​​O distúrbio do António não impede a família de viver momentos felizes.

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​Quando nasce um filho, nasce um pai, uma mãe e uma série de expetativas erradas que pomos nos nossos filhos», conta Carolina Chaves Graça Morais, recordando os sonhos que, há cinco anos, tinha projetado no António: «ouvi-lo dizer mãe, pedir para ir ao jardim, inscrevê-lo no ténis». Aos seis meses, os sinais de atraso no desenvolvimento do filho fizeram tremer os planos; aos dois anos e meio, o diagnóstico de síndrome de Angelman obrigou a repensar toda a vida.

Carolina e o marido, também ele António, perceberam que «nasceu um filho que não foi o que trouxemos para casa. É um novo filho». Também aprenderam que as dificuldades não são sinónimo de infelicidade. «Tem sido um processo muito bonito. Eu já não crio expetativas e deixo completa liberdade ao António para nos surpreender, para ser aquilo que ele quiser e conseguir».

Até ser dado nome ao distúrbio neuro-genético, que afeta uma em cada 20 mil crianças com atraso grave do desenvolvimento psicomotor, na ausência de fala e em dificuldades na locomoção, o casal vivia um sentimento de culpa. «Sentíamos que não éramos pais competentes, capazes de estimular o nosso filho». De tanto pesquisar, Carolina já tinha suspeitado que podia ser síndrome de Angelman, mas nem por isso o veredito reduziu a enorme tristeza. «Ficámos sem chão. Preferia saber que era eu que não sabia ser mãe», revela.


​António já consegue caminhar. Os pais notam uma grande evolução e acreditam que vai fazer mais conquistas

Com a doença chegou um quotidiano de consultas e terapias e, acima de tudo, de aflição pelo futuro do filho, no dia em que já não o possam acompanhar. Há momentos difíceis, «muitas lágrimas e inquietude», mas também a descoberta de uma nova forma gratificante de estar na vida. Carolina deixou o emprego exigente, que implicava deslocações e ausências de casa. Está a organizar-se para regressar à profissão que escolheu há anos, a psicologia. Abandonou uma vida de correria, fixada em metas de longo prazo, e aprendeu a valorizar o aqui e o agora, a aproveitar a família, os amigos e as «pessoas extraordinárias» com quem se tem cruzado, graças ao António. «Tenho estabelecido relações de amizade e cumplicidade muito bonitas», afirma, reconhecida.

Nos avós, que vivem próximo, encontra todo o apoio. A escola que o António frequenta desde os oito meses de idade surpreende-a pela «total inclusão» do filho. Os amigos estão sempre prontos para jantares na casa deles, o que representa um ambiente mais fácil para o António. Através da associação ANGEL, descobriu pessoas que vivem realidades semelhantes e funcionam como «uma rede de apoio importante para não nos sentirmos sozinhos».


António comunica cada vez melhor. Usa o olhar, o gesto e o toque para mostrar quando tem fome ou sede, quando quer dormir ou passear

O casal decidiu ter mais um filho e, após fazer um estudo genético para despistar eventuais problemas, nasceu o Duarte, hoje com dez meses. «Não se largam, é lindo de ver», conta a mãe. «Foi a melhor decisão que tomámos!». Os pais sentem-se confortados por saber que no futuro o António terá família, mas querem evitar que o Duarte sinta a responsabilidade de cuidar do irmão. «Não deve crescer com esse peso, nós é que somos os pais. A eles cabe-lhes brincarem e criarem memórias juntos».

A família faz questão de ter uma vida normal. Como diz Carolina, «a doença está lá, é um pormenor, não é a vida toda». Vão de férias, para a praia e a piscina, visitam os avós, passeiam, jantam fora, dormem em hotéis e em casas de amigos. Até vão a feiras populares e andam nos carrinhos de choque. «O António gosta de tudo», garante a mãe. Têm o cuidado de cumprir as regras para que a criança se mantenha estável, sem crises: a medicação às horas certas, a sesta, o descanso no regresso da escola, deitar cedo.

Carolina inventou um lema: «podemos transformar as nossas dores em amor». Em vez de se centrar naquilo que o António não vai poder fazer, prefere dar-lhe oportunidades para ele experienciar «momentos felizes». «OK, não faz ténis, mas anda a cavalo e gosta imenso!». O António andou na fisioterapia, hoje faz terapia ocupacional, terapia da fala, equitação, hidroterapia e osteopatia, para ajudar a estabilizar a epilepsia refratária, que se traduz em desmaios rápidos e imprevisíveis, e requer medicação.


Os pais proporcionam ao António oportunidades para experienciar «momentos felizes». Ele adora andar a cavalo​

A pacificação tem sido um processo, mas Carolina chegou a sentir-se «à beira do colapso». A chegada da pandemia, no início de 2020, foi a melhor coisa que lhes aconteceu. Obrigou-os a parar, abrandaram as regras terapêuticas do António, que roçavam «o exagero», passaram a ter tempo para comer, conversar e alinharem-se como família. Com o apoio da professora de educação especial, inventaram jogos, criaram uma horta, fizeram pinturas e bolos, arranjaram um pintainho, que o António amou. Foi também o período em que Carolina conseguiu fazer o luto. «Procurei ajuda, fiz terapia e foi importante para procurar a minha identidade e reencontrar-me enquanto mulher, além de mãe».

Já este ano, lançou o livro “As Conquistas do Larico”, com duas amigas, para «dar voz a todos os “Laricos”». António, o seu Larico, já consegue deslocar-se sozinho e comunica cada vez melhor. Usa o olhar, o gesto e o toque para mostrar quando tem fome ou sede, quando quer dormir ou sair para passear. Na escola, acompanha as atividades, «à maneira dele». Não fala, mas reconhece e compreende tudo ― a mãe tem a certeza e nota uma enorme evolução. «Digo sempre: muita calma, não vamos criar expetativas, mas vamos dar-lhe força, coragem e convicção de que será capaz».


O sorriso é quase uma constante no rosto de António. «É muito teimoso e não desiste», diz a mãe​​

A estratégia tem sido colocar o filho frente a novos estímulos. «Vamos aumentando o grau de desafio, também porque ele consegue corresponder. É muito teimoso e não desiste», explica. Há tempos, com o Duarte ao colo, insistiu com o António, que não queria caminhar: «Tem de ser, António, anda, eu ajudo-te». Quando uma senhora, que assistiu, lhe perguntou se não achava melhor arranjar uma cadeira para o filho, indignou-se: «Se o colocar numa cadeira agora, ele nunca vai andar». Custa-lhe ver o filho em dificuldade, mas assume que é melhor que ele seja confrontado com situações desconfortáveis agora que ela o pode amparar e desafiar a superar-se. «Tenho de trazer o máximo de funcionalidade à minha vida e à dele, para que saiba desenvencilhar-se. Vamos sentindo até onde é capaz de responder».

Recusa-se a olhar para o filho como um «coitadinho» e gostava de ver menos olhares de pena. «Caíste? Então dá cá a mão que te ajudo a levantar. Isto é inclusão e pode fazer a diferença numa família e nos Antónios que existem», afirma. Reconhece que também ela não tinha uma atitude inclusiva, e lançou o livro para levar as pessoas a refletir sobre como podem fazer a diferença com «um sorriso, uma simpatia ou um olhar normal». Também não tem pena de si própria. «O António inspira tanta gente, pela resiliência, o sorriso, a energia traquina. Se ele se tenta superar ― e ele é que vive com a doença e com as limitações, eu sou apenas a cuidadora ― só posso estar orgulhosa e inspirada por ele ser tão forte».

 


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